Vale Pincel I

O mais antigo Neolítico do território português

Freguesia/Concelho:Sines / Sines

Localização: 37°56'37.72"N; 8°50'26.53"W (C.M.P. 1:25000, Folha 526)

Cronologia: Neolítico antigo

Caracterização sumária

Povoado de ar livre, abrangendo área aplanada de 10 hectares do sopé da encosta meridional do maciço ígneo de Chãos de Sines; encontra-se limitado a sul por abrupta vertente litoral e a leste e oeste por linhas de água; era atravessado por linha de água que desaguava junto de pequena praia. A ocupação pré-histórica estabeleceu-se sobre areias eólicas plistocénicas que, por sua vez, assentaram sobre arenitos argilosos plio-plistocénicos (Fig. 1).

A jazida arqueológica foi atravessada longitudinalmente, segundo a direcção este-oeste, quer por rodovia de acesso ao porto de Sines, quer por tapete de transporte de carvão do mesmo porto para a central eléctrica de São Torpes. Já no ano 2000 foi uma vez mais afectada pela instalação de condutas de gás natural. Coincidindo com a realização destas obras, tiveram lugar extensas escavações arqueológicas (Fig. 2) dirigidas por Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, em 1986 (promovidas pela Unidade de Arqueologia do Gabinete da Área de Sines) e em 2000 – da responsabilidade do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (Tavares da Silva &e Soares, 1981; Soares & Tavares da Silva, 2003).

Esses trabalhos de campo permitiram identificar um nível arqueológico que continha numerosas estruturas domésticas, a grande maioria de combustão, em “cuvette” dissimétrica aberta nas areias do Plistocénico, quase sempre de contorno ovalado; o comprimento raramente excedia 1m, e a profundidade ficava compreendida entre 0,20 e 0,40m. Estas estruturas negativas continham numerosos termoclastos resultantes da acção do fogo sobre seixos rolados, que se comportavam como acumuladores térmicos; as lareiras surgiam frequentemente associadas a fossas repletas de cinzas e com escassos termoclastos, fossas que teriam a função de receber os subprodutos da actividade de combustão desenvolvida naquelas. Esta associação é reveladora de preocupações higiénicas no respeitante ao espaço doméstico (Fig. 3).

As diversas estruturas organizavam-se em núcleos de habitat, não necessariamente simultâneos, que se dispersavam pela vasta área da jazida. Um destes núcleos era delimitado, certamente com carácter simbólico, através de pequenos monólitos (grandes elementos de mós e um pequeno menir – Fig. 4 – com coroa de sustentação), a distâncias variáveis entre si.

Amostras de carvão recolhidas no interior de diferentes estruturas de combustão possibilitaram a determinação de onze datas radiocarbónicas que forneceram o intervalo cronológico de 5705 a 5306 cal A.C., a 2 sigma (95,4%).

A sua cultura material caracteriza-se pela presença de uma indústria em pedra lascada quase exclusivamente uso-intensiva, sobre sílex, algum da costa vicentina, outro da bacia mesozoica de Santiago do Cacém e outro ainda de proveniência exógena indeterminada; como substituto do sílex foram utilizados o quartzo hialino/leitoso e rochas afins de textura criptocristalina regionalmente disponíveis. A indústria lítica de Vale Pincel I possui carácter lamelar, sendo a debitagem realizada com recurso à percussão indirecta, a partir de núcleos prismáticos e fusiformes, com plataformas facetadas e em bisel, utilizando com alguma frequência o aquecimento prévio dos volumes a debitar. A análise dos micro-vestígios de uso pôs a descoberto a importante presença de elementos de foice utilizados na ceifa de cereais (Figs. 5 e 6), bem como de elementos geométricos de zagaias, utilizados em instrumentos de pesca (Fig. 7).

A cerâmica, grosseira e friável, apresenta decoração impressa (Figs. 8-10), obtida predominantemente por punção actuado obliquamente, raramente pela concha do Cardium, e ainda plástica. Por razões tafonómicas, não se preservaram restos faunísticos.

Às evidências indirectas da prática agrícola cerealífera representadas pelos elementos de foice junta-se abundante indústria moageira em pedra bojardada (Figs. 11-12). Os utensílios em pedra polida, embora escassos, estão presentes (Fig. 13). Vale Pincel I é por agora o maior estabelecimento da primeira fase de neolitização do território português. Não surge isolado, antes pelo contrário, integra-se em malha de povoamento relativamente extensa que se estende de Sines ao Cabo de S. Vicente (Fig. 14) e que se organiza em territórios polarizados por acampamentos de base (Quadro 1), complementados por acampamentos economicamente especializados, de curta duração, de acordo com uma estratégia de mobilidade logística herdada do Mesolítico regional. Vale Pincel I representa o momento de transição para a economia de produção de alimentos na Costa Sudoeste, quando o sistema de subsistência baseado na caça-pesca-recolecção-armazenamento, herdado do Mesolítico final, deixou de dar resposta às necessidades impostas pelo crescimento demográfico e correlativo stress ambiental das comunidades mesolíticas. Produzir alimentos deve ter sido um imperativo de sobrevivência para estes grupos humanos da Costa Sudoeste portuguesa.

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Joaquina Soares

Carlos Tavares da Silva

Fig. 1 – Localização do sítio neolítico de Vale Pincel I (circunferência a vermelho).

Fig. 2 – Vale Pincel I, 2000. Aspecto da escavação arqueológica.

Fig. 3 – Vale Pincel I, 2000. Aspecto da escavação arqueológica.

Fig. 4 – Vale Pincel I, 2000. Aspecto da escavação arqueológica.

Fig. 5 – Vale Pincel I, 2000. Aspecto da escavação arqueológica.

Fig. 6 – Vale Pincel I, 2000. Distribuição das estruturas de habitat pela área escavada.

Fig. 7 – Vale Pincel I. Estrutura de combustão repleta de calhaus rolados.

Fig. 8 – Vale Pincel I. Estrutura de combustão repleta de termoclastos.

Fig. 9 – Vale Pincel I. Estrutura de combustão exausta.

Fig. 10 – Vale Pincel I. Planos e perfis de estruturas de combustão.

Fig. 11 – Vale Pincel I. Monólito com a respectiva estrutura de contenção (erguido no decurso da escavação).

Fig. 12 – Vale Pincel I. Monólito com a respectiva estrutura de contenção (erguido no decurso da escavação).

Fig. 13 – Distribuição de probalidades das datas de calendário determinadas por radiocarbono para Vale Pincel I. Utilizou -se o Programa CALIB REV. 6.0 (Stuiver & Reimer, 2009) e a curva de calibração IntCal09 (Reimer et al., 2009).

Fig. 14 – Vale Pincel I. Indústria lítica uso-intensiva: núcleos.

Fig. 15 – Vale Pincel I. Indústria lítica uso-intensiva: buris (1-3); raspadores (4-6); furadores (7-14).

Fig. 16 – Vale Pincel I. Indústria lítica uso-intensiva: elementos de projéctil.

Fig. 17 – Vale Pincel I. Indústria lítica uso-intensiva: lamelas denticuladas (1-7); lamelas com retoque ouchtata (8-11); lamelas com lustre de cereal (12-14).

Fig. 18 - Vale Pincel I. Indústria lítica: elementos de foice sobre lamelas (1-3). 4- elemento de foice sobre micrólito geométrico.

Fig. 19 - Vale Pincel I. Indústria lítica: crescentes utilizados como elementos de projéctil.

Fig. 20 - Vale Pincel I. Cerâmica com decoração impressa e plástica.

Fig. 21 – Vale Pincel I. Recipiente em cerâmica com decoração impressa.

Fig. 22 – Vale Pincel I. Artefactos de pedra polida.

Fig. 23 - Sítios do Neolítico antigo da Costa Sudoeste: 1 - Vale Pincel I (Sines); 2 - Praia da Oliveirinha (Sines); 3 - Samouqueira II (Porto Covo); 4 - Água da Moita (Odemira); 5 - Medo Tojeiro (Odemira); 6 - Castelejo (Vila do Bispo); 7 - Cabranosa (Vila do Bispo); 8 - Padrão (Vila do Bispo). Sítios do Neolítico antigo evolucionado: 9 - Salema (Santiago do Cacém); 10 - Brejo Redondo (Sines); 11 - Vale Marim II (Sines); 12 - Vale Vistoso (Porto Covo); 13 - Galés (Odemira); 14 - Vale Santo I (Vila do Bispo).

Quadro I - Datas de radiocarbono para estruturas de habitat da ocupação do Neolítico antigo de Vale Pincel I (C.2B).

Quadro II – Tipologia funcional de habitats do Neolítico Antigo da Costa Sudoeste.