Vale Marim II

Freguesia/Concelho:Sines (Sines)

Localização:37°56'21.96"N; 8°49'8.57"W.(C.M.P. 526, Sines, esc.1:25000)

Cronologia:Neolítico antigo evolucionado

A escavação arqueológica, em 2006, sob a direcção de Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva e promovida pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, de uma área de 130m2, no sítio de Vale Marim II, permitiu identificar um núcleo de habitat do Neolítico antigo evolucionado. Outros núcleos de povoamento poderão ter existido, de forma dispersa, neste arqueossítio, no quadro de um modelo de povoamento polinucleado, característico dos habitats neolíticos de ar livre da região. Vale Marim II ocupa área arenosa da planície do sopé da encosta sudeste de Chãos de Sines, a 600 m da linha de costa e na margem direita de curso de água actualmente de fraco caudal.

O núcleo escavado em 2006 revelou 11 estruturas de habitat (formadas principalmente por lareiras e cinzeiros) construídas em diversos momentos, agrupáveis em dois óptimos de ocupação (atenda-se, por exemplo, à sobreposição parcial da Estrutura N13, integrada nas subcamadas 2c-3a, pela Estrutura N14, pertencente às subcamadas 2a-2b).

As lareiras, instaladas em depressões pouco profundas (0,10m de profundidade máxima) e de contorno subcircular (diâmetro compreendido entre 0,4 e 0,5m) ou ovalado (eixo maior variando entre 0,55 e 0,9m), apresentavam-se repletas de elementos pétreos que, em resultado de acção do fogo, fracturaram em numerosos termoclastos. Os cinzeiros (em clara relação de proximidade com as lareiras) eram formados por fossas repletas de areia carbonosa (acumulações de cinzas), de planta ovalada (eixo maior variando entre 0,5m e 0,6m) e com profundidades máximas entre 0,15m e 0,2m.

As lareiras e os cinzeiros definiam um núcleo com uma área de cerca de 35m2, para um óptimo de ocupação mais antigo (base da camada arqueológica) e somente com 8m2 para o mais recente (topo da mesma camada).

Além das referidas estruturas de carácter doméstico, foi posta a descoberto, no limite norte do núcleo de habitat, uma provável fossa sepulcral (Estrutura M19), de planta elíptica (0,7m X 0,9m) e 0,3m de profundidade, coberta por pequeno "cairn" constituído por apreciável número de mós, percutores, macro-núcleos, seixos afeiçoados e seixos rolados. A acidez do solo não teria permitido a conservação de ossos. Alguns paralelos coevos, como as sepulturas em fossa intra-habitat dos povoados do Neolítico antigo de Retamar, Cádis (Ramos & Lazarich, 2002) e Castelo Belinho, Portimão (Gomes, 2008) parecem apoiar aquela hipótese funcional para a nossa Estrutura M 19.

O conjunto artefactual recuperado, mormente a cerâmica, permite integrar o habitat de Vale Marim II no horizonte crono-cultural que temos vindo a designar por Neolítico antigo evolucionado, o qual corresponde à generalização da economia de produção de alimentos por vastas regiões do actual território português, e datá-lo do último quartel do VI-primeira metade do V milénio AC. A análise radiocarbónica (Beta 23688) de uma amostra de carvão vegetal de arbusto da espécie Arbutus unedo, recolhida em uma estrutura de combustão (Estr. N17), proporcionou a data de 6090±50BP, correspondente, uma vez calibrada a 2 sigma, ao intervalo de 5210-4840 cal BC.

Os artefactos líticos repartem-se pelos subsistemas tecnológicos uso intensivo e expedito da indústria em pedra lascada e pelo sistema tecnológico da pedra polida/bujardada. De um modo geral, podemos afirmar que a indústria lítica é pouco numerosa, e a sua densidade relativamente baixa, à excepção da concentração, verdadeiramente anómala, de instrumentos bujardados (sobretudo elementos de mó) identificada na Estr. M19.

Os artefactos líticos do subsistema expedito utilizaram um vasto leque de rochas ígneas disponíveis no maciço eruptivo de Chãos, e recolhidas pelo grupo humano de Vale Marim II sob a forma de seixos rolados, na praia de S. Torpes. Todas as etapas da cadeia operatória característica deste subsistema tecnológico estão presentes no sítio de Vale Marim II. Os tipos representados são muito simples, dominando as lascas não retocadas. Surgiram dois macronúcleos notáveis, pelas suas dimensões, ambos incluídos em estruturas.

Os utensílios de pedra lascada pertencentes ao subsistema uso intensivo foram manufacturados a partir de duas variedades principais de sílex: o melado e o branco. O primeiro, disponível na região (bacia mesozóica de Santiago de Cacém), está representado por núcleos, lascas e lamelas, tendo sido, pois, trabalhado in situ; o sílex branco, provavelmente originário de Sagres/Cabo de S. Vicente, é muito raro e ocorre sobretudo através de crescentes, que podem ter chegado ao povoado na forma definitiva de projécteis, em resultado de sistema de trocas, provavelmente desenvolvido ao longo da Costa Sudoeste. O sistema de trocas referido pode ser alargado a regiões mais setentrionais, como sugere um crescente manufacturado sobre sílex rosado de excelente qualidade, que, por exame macroscópico, atribuímos à região de Rio Maior.

Os instrumentos de pedra polida estão presentes sob a forma de duas enxós e de um fragmento mesial de provável machado.

Os artefactos de pedra bujardada, mais numerosos, compreendem diversos elementos de mó dormentes, alguns moventes, percutores e polidores. A maioria dos utensílios bujardados proveio de um contexto secundário, de reutilização: a cobertura da fossa (presumivelmente funerária) M19, onde poderiam ter desempenhado função ritual. A sua importância numérica assinala indirectamente a vocação agrícola do grupo humano que viveu em Vale Marim II.

No que se refere aos recipientes cerâmicos, as formas são simples e reduzem-se a dois grupos principais: o das taças em calote e o dos esferoidais/ ovóides (de bordo subvertical ou ligeiramente inclinado para o interior). Este último é o mais abundante em todos os fabricos e subcamadas. Em ambos os grupos, os bordos são direitos ou com ligeira inflexão para o exterior.

Dos 63 exemplares (com bordo), considerados recipientes distintos (NMI), 29 são decorados (46,0% em relação ao NMI).

Na sua grande maioria, a decoração da cerâmica de Vale Marim II restringe-se à zona superior da superficie externa do bojo. Alguns exemplares (6), provenientes sobretudo da C.2a, possuem o lábio segmentado por impressões - bordo denteado. Domina a técnica da impressão, logo seguida pela técnica da incisão (a punção fino, bífido ou rombo) e pelos elementos plásticos.

No que se refere aos motivos impressos, estão presentes: impressões em bastonete, triangulares, lúnulas simples e lúnulas com impressões punctiformes em ambas as extremidades. Os diferentes tipos de impressões foram executados por grande variedade de matrizes: punção rombo actuado obliquamente; espátula; extremidade de caule oco, aplicado em posição oblíqua; hemicaule oco. Os tipos de impressões referidos organizam-se, geralmente, em bandas horizontais de duas ou três fiadas, quase sempre localizadas próximo do bordo.

No que respeita à técnica incisa, por vezes associada à impressa, surgem os seguintes motivos: sulco horizontal situado imediatamente abaixo do bordo (motivo que se torna corrente no Neolítico médio); traços verticais, partindo do bordo; reticulado, formando banda horizontal ou oblíqua, cujas incisões têm, por vezes, traçado irregular, podendo ser efectuadas por instrumento de extremidade bífida; banda horizontal de incisões em ziguezague; banda horizontal de motivo em espinha limitada superior e inferiormente por fiadas de impressões punctiformes. Um tipo especial de decoração incisa é constituído por penteado arrastado, com sulcos rectilíneos ou ligeiramente ondulados.

A decoração plástica é a menos frequente das três técnicas utilizadas em Vale Marim II, compreendendo cordões horizontais, linguetas aplicadas sobre o bordo, e mamilos, por vezes implantados sobre o bordo.

A escassez, ou mesmo ausência, de ecofactos nestes povoados de areias do Neolítico do sul de Portugal, limita consideravelmente a reconstrução paleoeconómica. Por razões tafonómicas (acidez e lixiviação elevadas), os solos arenosos em que assentou o estabelecimento de Vale Marim II não conservaram quaisquer restos faunísticos.

Surgiram em algumas lareiras (Estrs. N17 e N14), em situações particularmente favoráveis, ao abrigo da lixiviação, raros fragmentos de carvão vegetal, o que permitiu uma datação radiocarbónica, como atrás referimos.

A baixa densidade de artefactos, a dinâmica da formação do depósito arqueológico, a detecção de um ritmo de deposição oscilatório ou cíclico, sugerem um local habitado de forma recorrente, de acordo, por hipótese, com o ritmo de reposição natural da fertilidade dos solos agrícolas.

A cerâmica de Vale Marim II, datada, quer por critérios tipológicos quer por análise radiocarbónica, do último quartel do VI milénio/1º quartel do milénio seguinte, contribui, numa perspectiva de "estratigrafia horizontal" passível de ser lida nas encostas sul e sudeste de Chãos de Sines, para a confirmação da recuada idade, do Neolítico antigo inicial, de Vale Pincel I, que situamos no 2°/3° quartéis do VI milénio AC. Com efeito, a cerâmica de Vale Pincel I, associada a uma indústria lítica de tradição mesolítica, oferece características que a diferenciam claramente da de Vale Marim II ou da de outros arqueossítios que têm sido considerados do Neolítico antigo evolucionado. Enquanto a decoração cerâmica deste último período revela abundante recurso à técnica da incisão associada a impressões obtidas através de diversificadas matrizes, na cerâmica de Vale Pincel I são muito raros ou estão mesmo ausentes os motivos incisos em contraste com a elevada frequência da impressão (embora raramente cardial) produzida por limitado número de matrizes.

Bibliografia

GOMES, M. V. (2008) – Castelo Belinho (Algarve, Portugal) and the first Southwest Iberian villages. In Early Neolithic in the Iberian Peninsula (BAR 1857). Oxford, p. 71-78.

RAMOS, J. & LAZARICH, M. (2002) – El asentamiente de El Retamar (Puerto Real, Cádiz). Universidade de Cádiz.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J. & COELHO-SOARES, A. (2010) – Arqueologia de Chãos de Sines. Novos elementos sobre o povoamento pré-histórico. Actas do 2º Encontro de História do Alentejo Litoral, p. 11-34.

Carlos Tavares da Silva

Joaquina Soares

Antónia Coelho-Soares

 

Fig. 1 – Sítio arqueológico de Vale Marim II, assinalado por círculo vermellho.

Fig. 2 – Localização de Vale Marim II (2) em relação a Vale Marim I (1).

Fig. 3 – Vale Marim II, 2006. Aspecto da escavação arqueológica.

Fig. 4 – Vale Marim II, 2006. Estruturas de combustão N13, N14 e P15.

Fig. 5 – Vale Marim II, 2006. Perfis das estruturas N13 e N14, a primeira existente na base da Camada 2 e a segunda, em um nível superior da mesma camada. Estas estruturas correspondem a dois momentos distintos na ocupação do Neolítico Antigo de Vale Marim II.

Fig. 6 – Vale Marim II, 2006. Tumulus (?) de presumível sepultura.

Fig. 7 – Vale Marim II, 2006. Artefactos líticos do subsistema tecnológico expedito.

Fig. 8 – Vale Marim II, 2006. Artefactos líticos do subsistema tecnológico uso-intensivo.

Fig. 9 – Vale Marim II, 2006. Artefactos líticos do subsistema tecnológico uso-intensivo.

Fig. 10 – Vale Marim II, 2006. Instrumentos em pedra bujardada (elemento de mó manual) e polida (enxós).

Fig. 11 – Vale Marim II, 2006. Cerâmica decorada.