Ribāt da Arrifana

Freguesia/Concelho:Concelho de Aljezur

Localização:37°19'13.20"N, 8°52'34.01"W (CMP. 1:25.000, Folha 583A)

Cronologia:Islâmico

O Ribāt da Arrifana localiza-se em pequena península, designada por Ponta da Atalaia, a cerca de 6 Km a poente de Aljezur. A Ponta da Atalaia com cota máxima de 52m, cerca de 250m de comprimento e 100m de largura máxima está delimitada por altas escarpas, quase verticais, sobre o oceano (Fig. 1). O topónimo “Ponta da Atalaia”, pelo qual é conhecida esta pequena península, deve-se ao facto de no século XIV ali ter existido uma torre-atalaia funcionando como vigia da costa atlântica.

O Ribāt da Arrifana, mencionado nos textos muçulmanos como Ribātal-Rihana, foi fundado pelo mestre sufi Ibn Qasī, em 1130, tendo como objectivo preparar monges guerreiros para a guerra santa (djihād). Combater, assim, todos os inimigos da verdadeira fé islâmica (cristãos e judeus) e muçulmanos considerados hereges. Pela doutrina sufi estes conventos islâmicos (Ribāt-s) são espaços caracterizados pelo isolamento e austeridade permitindo a contemplação e reflexão religiosa, proporcionando a aproximação a Deus.

O mestre sufi Ibn Qasī, natural da província de Silves e descendente de uma família cristã, ao acolher o sufismo proclamado por “al-Ghazālī, através de Ibn al-Arif, de Almeria (1130-1135) e de outros mestres (...) aproximou-se dos ideais eremíticos cristãos, conhecidos e respeitados pelos muçulmanos.” (Gomes & Gomes, 2011:138). A sua formação e origem social serão, assim, um marco ideológico do seu percurso, detendo com erudição a escrita árabe (Gomes, 2007:411).

Para além das práticas místicas, a localização geográfica costeira do Ribāt da Arrifana corresponderia à necessidade de defesa e controlo do litoral e afastamento das áreas urbanas detentoras dos mecanismos de poder (religioso, económico, político e militar).

A intervenção arqueológica, da responsabilidade científica de Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes, permitiu identificar estruturas arquitectónicas com importante singularidade no cenário das edificações religiosas islâmicas, até agora única no território nacional, com paralelo peninsular no Ribāt de Guardamar (Alicante), este cerca de dois séculos mais antigo. “Todas aquelas semelhanças construtivas e formais, existentes entre as duas rábidas, embora separadas por dois séculos (...) e por um milhar de quilómetros, uma no “Sharq” Al-Andalus e outra no “Gharb”, colocam-nos perante a possibilidade de definir um tipo de rábida que se pudesse construir no Al-Andalus no século X, previvendo até ao século XII, totalmente diferente do tipo geral conhecido no Norte de África (...) apresenta, em relação à sua estrutura espacial e funcional, claros traços inspirados em protótipos de conjuntos religiosos orientais” (Azuar Ruiz, 2008: 35).

O conjunto de edificações, colocadas a descoberto, evidencia um espaço hierarquizado quer em termos funcionais como simbólicos (Fig. 2).

O acesso ao Ribāt era feito por um pátio de grande dimensão, com celas anexas, podendo corresponder à escola corânica (madrasa) onde a doutrina sufi era ministrada. Os mais recentes trabalhos arqueológicos colocaram a descoberto novas edificações que podiam, segundo R. e M. Varela Gomes, corresponder à sala de lavagem e preparação dos cadáveres a sepultar e necrópole com dez sepulturas identificadas, delimitadas por coroa de pedras e uma sepultura com lápide sepulcral, in situ, contendo epígrafe árabe. Outras lápides foram descobertas, mas se tiveram outrora epígrafes, actualmente, não o demonstram podendo estas ter sido pintadas e com o tempo terem desaparecido. Algumas das sepulturas encontravam-se adossadas às qiblas de duas mesquitas e outras encontravam-se, sucessivamente, encostadas a uma sepultura de maiores dimensões que continha a estela epigrafada (Fig. 3), esta última “…encontrava-se ainda «in situ», quase ao centro do maior «tumuli», dado medir 2,40m por 1,90m, talvez sendo o fundador do espaço mortuário e a que se encostavam dois outros «tumuli» de menores dimensões.” (Gomes & Gomes, 2011: 139). A data inscrita no epitáfio (461 H./1017 J.C.) é cerca de sessenta anos anterior à fundação do Ribāt da Arrifana. Poderia tratar-se da necrópole de antiga alcaria próxima da área ocupada pelo Ribāt ou pertencer a “… personagem com importante carisma religioso (baraka), sendo para ali trasladado”. (Gomes & Gomes, 2011: 139). A estela em questão demarcava sepultura ou o cenotáfio de Ibrāhim b’Adb al-Malik sobre o qual as crónicas andaluzas não têm quaisquer referências. No entanto “… tanto a eleição do texto corânico, como a tipologia da letra usada nas três primeiras linhas da inscrição, indicam que foram realizadas nos dois primeiros decénios da instalação almorávida na península (…) a trasladação da lápide, tida como assinalando sepultura de individuo virtuoso ou possuindo carisma (baraka), para o Ribāt, tal qual santa relíquia onde passasse a assinalar cenotáfio, não seria de estranhar no contexto místico daquele lugar…” (Barceló, Gomes & Gomes, 2011: 155).

Tradução do texto árabe inscrito na estela:

1 [Em nome de Deus,] Clemente e Misericor[dioso].

2 «Deus testemunha, e com Ele[os anjos e] os homens dotados de ciência, que não há outro deus senão Ele, trabalhando

3 com equidade. Não há outro Deus senão Ele, o Poderoso, o Sábio» [Alcorão III, 18]

4 Morreu Ibrāhim b’Adb al-Malik – i Deus tenha piedade dele! –

5 aos sessenta e oito anos, dando testemunho de que não há outro deus

6 que Deus, único, sem par e de que Maomé é seu servidor e seu enviado,

7 na noite de segunda-feira, a dez por ficar do último rabi do ano sessenta e um

8 e quatrocentos i Deus tenha piedade de quem recite uma oração e peça para ele a misericórdia!

(Barceló, Gomes & Gomes, 2011: 153).

 Na área da zona mais estreita da península foi colocado a descoberto vasto complexo de edificações que integram várias mesquitas, uma das quais de grandes dimensões, e áreas residenciais onde habitariam os monges guerreiros. Este conjunto de edificações corresponderia à área de maior actividade do Ribāt, permitindo controlar a passagem para o interior da península (Gomes & Gomes, 2007: 54).

Na extremidade ocidental desta península, a intervenção arqueológica colocou a descoberto uma área com pequena mesquita, minarete (que no século XIV foi transformado em torre-atalaia) e um “muro de orações” edificado em taipa (Figs. 4 e 5). Este espaço mais próximo do oceano, por certo, seria considerado mais sagrado se atendermos ao minarete ali edificado junto da mesquita; esta, possivelmente, usada pelo mestre sufi Ibn Qasī (Gomes & Gomes, 2007: 58).

A cultura material deste convento islâmico está representada por: cerâmica, essencialmente, de uso comum – cozinha, mesa e armazenamento – (Fig. 6), a par de cerâmica de construção (telhas), sendo raros os recipientes esmaltados e decorados pela técnica da corda seca total e parcial, estes mais dispendiosos e marcados pela ostentação, não traduzindo os valores sufis de austeridade e rigorosa disciplina; armas, que seriam utilizadas pelos monges guerreiros nas suas campanhas militares; alguns adornos (contas cilíndricas e esféricas); rolos em chumbo (placas-inscrição) que se colocavam nas paredes das mesquitas, contendo frases religiosas; além de estojo-amuleto, de forma tubular, para pendurar ao pescoço. Estes estojos-amuleto continham frases do Alcorão escritas sobre papel ou pergaminho que protegia e predestinava a vida de quem as usava (Gomes & Gomes, 2007: 100).

Os monges guerreiros que habitavam este local eram detentores de uma economia agro-marítima de subsistência. Os restos faunísticos recuperados evidenciam o predomínio de moluscos marinhos, a par de restos osteológico de mamíferos e de aves. Estes recursos seriam complementados com a prática da exploração agrícola em terrenos próximos de linhas de água nas imediações da Ponta da Atalaia. Os moluscos e crustáceos comestíveis identificados no Ribāt da Arrifana, com excepção de escassas espécies de ambientes estuarinos, são representativos do litoral atlântico da região de Aljezur; salientando-se a predominância do Pollicipes pollicipes 48,83%, Thais haemastoma (18,75%), Patella vulgata (14,24%), Monodonta lineata (11%) (Callapez, 2011, p.174). Quanto aos restos zoomórficos, as espécies mais comuns são ovinos e bovinos de pequeno porte sem a cabra nem equídeos, predominando evidências da pastorícia; também foram identificadas aves (galinha, perdiz e ganso). A presença de porco doméstico é residual (apenas uma amostra); apresenta patina diferente da das restantes amostras; segundo M. Teles Antunes poderá corresponder a um contexto distinto ou de idade diferente dos restantes elementos faunísticos (Antunes, 2011).

Bibliografia

ANTUNES, M.T. (2011) - Ribāt da Arrifana (Aljezur) – Arqueozoologia, estudo complementar. In R. V. GOMES, M. V. GOMES & C. TENTE (eds.), Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular – Encontros e Desencontros. Lisboa: Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa, p. 157-163.

AZUAR RUIZ, R. (2008) - O contributo da Arqueologia para o estudo dos Ribāt-s do Al-Andalus. In Ribāt da Arrifana. Cultura material e espiritualidade. Aljezur: Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur e Município de Aljezur, p. 29-36.

CALLAPEZ, P. (2011) - Estudo zooarqueológico dos invertebrados do Ribāt da Arrifana (Aljezur, Portugal). Sua relação com as comunidades marinhas litorais e com hábitos alimentares no Algarve muçulmano no século XII. In R. V. GOMES, M. V. GOMES & C. TENTE (eds.), Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular – Encontros e Desencontros. Lisboa: Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa, p. 165-186.

GOMES, M. V. (2006) - Ibn Qasī – Memória, do pensamento e acção, do mestre sufi da Arrifana. Al –Rihana, 2. Aljezur, p. 17-44.

GOMES, R. V. (2010) - El mundo rural en el sur del actual territorio portugués (siglos XII-XIII). Arqueologia Medieval. Els espais de Secà. 4, p. 99-116.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2004) - O Ribāt da Arrifana (Aljezur, Algarve): Resultados da campanha de escavações arqueológicas de 2002. Revista Portuguesa de Arqueologia,7 (1). Lisboa. p. 483-573.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2004a) - El Ribāt de Arrifana (Aljezur, Algarve); identificación y primeros trabajos. In Fouilles de la Rábita de Guardamar I. El Ribāt Califal. Excavaciones e Investigaciones (1984 -1992). Madrid: Casa de Velázquez, p. 239-245.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2005) - O Ribāt da Arrifana (século XII). Resultados de três campanhas de escavações. Al-Rihana,1. Aljezur, p. 41 -71.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2005a) - O Ribāt da Arrifana (Aljezur, Algarve): Resultados da campanha de escavações arqueológicas de 2003 – Sector 1. Revista Portuguesa de Arqueologia,8 (2). Lisboa, p. 471-533.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2005b) - A djihād no Extremo Sudoeste Peninsular – O recém-identificado Ribāt da Arrifana (século XII). Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,16. Lisboa, p. 141-159.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2006) - O Ribāt da Arrifana (Aljezur, Algarve): Resultados das escavações arqueológicas no Sector 3 (2003/2004). Revista Portuguesa de Arqueologia,9 (2). Lisboa, p. 329-352.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2007) - Ribāt da Arrifana. Cultura material e espiritualidade. Aljezur: Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur e Município de Aljezur.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2008) - O Ribāt al-Rihana de Ibn Qasi (Aljezur) – Uma sacralidade efémera, em meados do século XII. Pedra e Cal, 38, p. 6-7.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2008a) - O Ribāt da Arrifana, no contexto espiritual e político, entre o Gharb e o Maghreb. In Actas do 4º Colóquio de História Luso-Marroquina – Portugal e o Magrebe. Lisboa, p. 17-37.

GOMES, R. V. & GOMES, M. V. (2011) - O Ribāt da Arrifana – Entre cristãos e muçulmanos no Gharb.  InR. V. GOMES, M. V. GOMES & C. TENTE (eds.), Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular. Encontros e Desencontros. Lisboa: Instituto de Arqueologia e Paleociências de Universidade Nova de Lisboa, p. 137-146.

GOMES, R. V.; GOMES, M. V. & BARCELÓ, C. (2011) - Estela funerária epigrafada do Ribāt da Arrifana (Aljezur).  In R. V. GOMES, M. V. GOMES & C. TENTE(eds.), Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular – Encontros e Desencontros. Lisboa: Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa, p. 147-156.

PICARD, C. (2011) - Ribats et édifices religieux de l’Islam sur les côtes du Portugal à l’époque musulmane médiévale: Islamisation et “Jihad” dans le Gharb Al-Andalus. In R. V. GOMES, M. V. GOMES & C. TENTE(eds.), Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular – Encontros e Desencontros. Lisboa: Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa, p. 121-136.

Susana Duarte

 

Fig. 1 – Localização do Ribāt da Arrifana na Carta Militar de Portugal. Escala 1/25000, folha 583A.

Fig. 2 – Planta com as edificações colocadas a descoberto no Ribāt da Arrifana. (Seg. Rosa Varela Gomes & Mário Varela Gomes, 2008a, p. 34).

 

Fig. 3 – Decalque da estela epigrafada em xisto-grauváquico de contorno sub-trapezoidal da necrópole do Ribāt da Arrifana. (Seg. C. Barceló, R. V. Gomes & M. V. Gomes, 2011, p. 150).

 

Fig. 4 – Ribāt da Arrifana. Planta com as edificações colocadas a descoberto no Sector 3 (S3) (Seg. Rosa Varela Gomes & Mário Varela Gomes, 2006, p. 332).

 

Fig. 5 – Ribāt da Arrifana. Sector 3 (S3). Mihrab da mesquita, visto de poente (Seg. Rosa Varela Gomes & Mário Varela Gomes, 2006, p. 334).

Fig. 6 – Ribāt da Arrifana. Cerâmica comum: 1 e 2 – panelas; 3 a 8 – frigideiras (Seg. Rosa Varela Gomes & Mário Varela Gomes, 2005b, p. 154-155).