Cerro do Castelo de Vale de Gaios

Freguesia/Concelho: S. Luís (Odemira)

Localização: 37°40'17"N; 8°37'26"W (C.M.P. 1:25.000, Folha 553)

Cronologia: Período medieval islâmico

O Cerro do Castelo, na herdade de Vale de Gaios, perto do lugar de Zambujeira e da aldeia do Castelão, é uma antiga fortificação de período islâmico que se situa a cavaleiro sobre a escarpada margem da ribeira do Torgal. Abrange todo o cume de uma colina isolada de formato cónico, pontuada de afloramentos de rochas plutónicas brancas (felsito), conhecido por «tufo do castelo», muito proeminente na paisagem plana da envolvência.

Coroa essa elevação uma imponente muralha construída com aparelho ciclópico de grandes pedras brancas da mesma litologia, rudemente facetadas, ligadas apenas com barro vermelho. Assenta sobre afloramentos rochosos no rebordo do cume que realçam a eminência do muro defensivo.

Com uma planta ovalada, a muralha delimita a área interna do castelo, de aproximadamente meio hectare. Tem largura regular de 2,1 m e ainda conserva, em alguns pontos, alçado superior a 3 ou mesmo 4 m, quase sempre oculta entre uma grande guarnição de arbustos que eficazmente a defendem da vista. A entrada no recinto processava-se pela porta no flanco sudoeste e existem restos de uma torre em cubelo projectada da muralha no lado norte.

Desgraçadamente, foi por muito tempo «desporto» e demonstração de virilidade entre os moços da redondezas do Castelão fazer rebolar as grandes pedras da muralha pela encosta abaixo, prática que muito contribuiu para a perda de imponência do antigo castelo.

O tipo de fortificação, a arquitectura militar, a dimensão da área interna, o destaque paisagístico do Cerro do Castelo, sítio dos moiros de referência em toda a região de Odemira, são indicadores de povoação importante.

No Muʿjam al-Buldân (em português Livro dos Países), compêndio histórico e geográfico escrito entre 1225 e 1229 com base em obras mais antigas de autores hispano-árabes como al-Râzî, al-Bakrî ou Ibn Ghalîb, o geógrafo sírio Yaqut al-Hamâwî menciona a existência no Garbe al-Andaluz de uma madīna (em português cidade) chamada de Targhala, pertencente aos distritos de Ocsónoba (Faro). É aceitável identificar essa “cidade” perdida de Targhalacom as ruínas da antiga fortificação do Cerro do Castelo, no Vale de Gaios, na margem direita da majestosa ribeira do Torgal. O hidro-topónimo Torgal existe desde, pelo menos, o tempo de Iacute, pois em 1235 a partição do termo de Aljustrel com o de Odemira seguia pelo “carpium de Torgala”, «escarpa do Torgal», sendo razoável aceitar a evolução fonética Targhala > Torgala > Torgal.

Aos distantes olhos ou ouvidos de Iacute deve ter chegado a informação, em segunda ou terceira via e desactualizada, da existência de uma povoação importante com esse nome, que registou no seu “Dicionário dos Países” com a qualificação de cidade, certamente com exagero. É que sucede que é mais provável que o Cerro do Castelo fosse apenas uma povoação de médio tamanho sede de uma iqlîm, que era uma forma de circunscrição administrativa de média dimensão instituída pelo poder central durante o período emiral-califal (meados do séc. VIII a inícios do séc. XI), mas que persistiu pelas centúrias subsequentes do domínio árabe. Iacute, mal informado ou por estar mais habituado à dimensão das grandes urbes do Médio Oriente e do al-Andaluz, terá assumido que tal iqlîm de Targhalacorresponderia a uma madīna importante do Garbe.

A pertença à cora de Ocsónoba também não é obstáculo a localizar Targhala no Cerro do Castelo da ribeira do Torgal, uma vez que também os castelos do limite meridional do Alentejo de Murjîq (a antiga Marachique, no Castro da Cola, Ourique) e al-Wikā ou al-Riqa (a actual vila de Ourique) são dados por Iacute e outros cronistas árabes da altura como dependentes de Faro ou Silves. Também Odemira foi referida mais do que uma vez ao longo da Baixa Idade Média como terra do Algarve.

A Arqueologia permite suportar, pelo menos no enquadramento temporal, esta proposta. Escavações arqueológicas foram realizadas em 2000 e 2001 no Cerro do Castelo, na zona de entrada do recinto fortificado. Documentou-se que esse acesso se fazia através de uma «porta em cotovelo». Neste tipo de entrada, a porta era antecedida de um pequeno átrio aberto para o exterior num intervalo da muralha, mas em posição recolhida para dentro da linha desta. O lado interno do átrio é definido por dois segmentos curtos de muros mais estreitos que se articulam entre si e com o segmento da muralha principal a sul em ângulos rectos. A passagem da porta (que não foi ainda escaavda), relativamente estreita, está no lado norte do interior desse átrio, entre o muro leste e o muro da muralha principal, que foi rematado por uma pequena torre em forma de T. Assim, a porta era perpendicular em relação à face da muralha e retraída em alguns metros para o interior dela. A entrada no castelo ficava desta maneira melhor protegida e, de certo modo, também escondida dentro de átrio semi-interno apertado, no interior do qual era difícil manobrar dispositivos de assalto, como aríetes. Este tipo de entrada é frequente em alguns castelos árabes mais importantes e era uma solução de arquitectura militar planificada destinada a melhorar as possibilidades de defesa da entrada, sempre o ponto de mais vulnerável dos castelos.

Pelos vestígios recolhidos na escavação arqueológica das camadas associados à face interna do muro leste do átrio da «porta em cotovelo» (incluindo uma lareira possivelmente mantida para proporcionar conforto de luz e calor a um posto guarda da entrada), é possível situar a construção e utilização desta porta em cotovelo no século XI a inícios do XII, tratando-se, assim, esta última de uma reformulação ou modernização da arquitectura defensiva da fortificação.

Outras camadas cuja relação estratigráfica demonstra serem mais antigas que os muros da porta em cotovelo, dado que se prolongam por debaixo deles, continham fragmentos de recipientes cerâmicos de modelos um pouco mais antigos, que se pode datar, pelo seu estilo, dos séculos IX ou X. Devem corresponder à fase de edificação da muralha principal do castelo. Infelizmente, todo o espólio recolhido na referida sondagem se encontra num estado muito fragmentado.

No decorrer do séc. XII, o Cerro do Castelo parece ter sido definitivamente abandonado, cem anos antes de Iacute a ele se referir.

Outra sondagem arqueológica aberta alguns metros ao lado da porta no interior do recinto do Cerro do Castelo permitiu reconhecer indícios claros de actividade siderúrgica, pelo que se pensa que o sítio controlava a muito activa indústria de mineração e produção de ferro da zona de S. Luís-Odemira no período emiral-califal. Encontrou-se até uma massa de ferro em bruto transformada pelo processo de redução de minério, que de seguida seria depurada e modelada em barra de ferro para forja de armas ou ferramentas. Este tipo de vestígio é muito raro entre os restos paleo-siderúrgicos.

O Cerro do Castelo é o mais imponente sítio fortificado de período islâmico existente no concelho de Odemira. E razões teriam o emirado omíada de Córdova para fazer instalar um castelo forte e seguro para eficazmente exercer o controlo desta região litoral e mineira, nas faldas setentrionais da serra algarvia e no caminho ocidental para o Algarve. Ainda que seja afoiteza encetar relação com quaisquer acontecimentos históricos, sabe-se que o Gharb viveu no século IX momentos conturbados, consequência dos conflitos sociais entre os poderes instituídos no al-Andaluz. Uma personagem em particular, de seu nome Abdar-Rahman ibne Marwan al-Jiliqi, também conhecido como Maruane, o Galego, encabeçou uma prolongada revolta de maulas (classe social subalterna de escravos e servos), muladis (recém-convertidos ao islamismo ou hispânicos muçulmanos) e moçárabes (cristãos que viviam sob domínio muçulmano) contra o quinto emir de Córdova, Mohâmede I, sublevação que se estendeu a grande parte do Gharb Al-Andalus. Aconteceu no ano de 884, quando, depois de algum tempo ao serviço do rei cristão Afonso III de Leão, Maruane se rebelou contra o poder central do emirado omíada de Córdoba e, segundo um cronista da época, “…entrou em Ossonoba [Faro] e assenhoreou-se de um monte na sua jurisdição, chamado Monte Sacro [Monchique], e de toda a cordilheira do Algarve, devastando-a”. Dada a proximidade geográfica, o castelo de Vale de Gaios, antiga Targhala, não deve ter ficado alheio a estes eventos político-militares.

Tudo indica, portanto, que o Cerro do Castelo do Torgal foi, pelos séculos IX a XI, a cabeça de território do baixo Mira. Tanto mais que, face aos dados actuais, parece que foi só depois de o Cerro do Castelo ter sido abandonado que cresceu, um pouco mais para sul, em cabeço provavelmente até então desocupado na margem do Mira, no limite da zona navegável, outro povoado à volta de um castelo de período islâmico ou, pelo menos, de uma torre importante: Odemira. Desta fortificação só existe documentação a partir de 1245, e sabe-se que foi desde 1256 sede do vasto concelho.

A vida do Cerro do Castelo de Vale de Gaios não se esgota nem antes, nem depois, do período decorrido entre o tempo de Maruane, no séc. IX, e o aparecimento em cena de um príncipe cristão a que os Árabes chamavam de Ibn-Arrik, o “filho de Henrique”, que viria a ser no século XII primeiro rei de Portugal. Antigamente — isto até meados do século passado — faziam-se em certos dias (no S. João ou no Maio) piqueniques no Cerro do Castelo, assim como era afamada a água de afamada fonte de bica que derramava sobre uma pedra trabalhada existente na vertente norte do cabeço. E também existiam mirabilia diversas no local: conta-se que a um «buraco» existente no interior do recinto (talvez restos de uma cisterna), atiravam-se laranjas que, pelo subsolo, garantem que iam sair muito mais abaixo no extenso e sombrio fundão do Pego das Laimas na ribeira do Torgal, situado no sopé do Cerro do Castelo.

Local aquático de mistérios e encantamentos, o topónimo Laimas poderá advir de alteração fonética de Lamias, divindades que habitavam os rios, conhecidas na mitologia indígena do Ocidente da Península combatida pelo cristianismo primitivo do séc. VII. Outra lenda conta que chamavam “Cadeira dos Mouros” a um determinado afloramento rochoso no topo do Cerro do Castelo, o que parece ter enquadramento num tipo de lenda tópica frequentemente associada a cultos rupestres pré-cristãos e/em sítios pré-históricos. Em tal cadeira rupestre, ter-se-á encontrado em tempos uma espada de bronze oculta na rocha, o que a ser verdade, pode integrar-se num género de ocultações de determinados tipos de armas que remontam normalmente a épocas pré-romanas.

Tais informações, colhidas entre os mais velhos do Castelão, são de certa forma condicentes com outra realidade documentada pelas escavações arqueológicas de 2000/1: existem evidências – nomeadamente, fragmentos cerâmicos de tipologia pré-romana – de uma indubitável ocupação do topo do cabeço do Cerro do Castelo na Idade do Ferro ou na antecedente Idade do Bronze, portanto, mais de mil anos antes da povoação da Alta Idade Média que se crê ter sido a antiga Targhala. Mas essa é outra (pré-)história.

Bibliografia:

COELHO, A. B. (2008) — Portugal na Espanha Árabe. Lisboa: Caminho

GRANGE, M. & VILHENA, J. (2009) — Les activités sidérurgiques dans le campagnes du Gharb al-Andalus: l'example de la vallée du Mira (Bas Alentejo). In M. OUERFELLI & E.VOGUET (Coords.), Le monde rural dans l'Occident musulman médiéval(Dossier thématique) (Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, 126), p. 65-90.

QUARESMA, A. M. (2006) — Odemira histórica. Estudos e documentos. Odemira: Município de Odemira.

VILHENA, J. (2011) – A desaparecida Targhala. FO Magazine,5. Odemira, p. 44-48.

VILHENA, J. & GRANGE, M. (2008) – Premières données archéologiques sur le Baixo Mira durant le haut Moyen Âge (VIIe-XIe siècle): Études de cas et problématiques générale. Actas do III Encontro de Arqueologia do Sudoeste Peninsular (Vipasca – Arqueologia e História, 2), p. 542-558 (recurso electrónico).

 Jorge Vilhena

Fig. 1 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Vista geral de oriente.

Fig. 2 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Vista geral de sul.

Fig. 3 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Vista geral de norte.

Fig. 4 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Muros da «porta em cotovelo» do séc. XI-XII, vista tomada de oeste.

Fig. 5 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Aspecto da escavação de 2001 na «porta em cotovelo». Vista de leste.

Fig. 6 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios. Aspecto da escavação de 2001 na «porta em cotovelo». Vista de sul.

Fig. 7 – Topografia e planta da muralha do Cerro do Castelo de Vale de Gaios (in Vilhena & Grangé, 2008, Fig. 2).

Fig. 8 – Desenho do alçado do lado interior e das camadas subjacentes do muro leste da «porta em cotovelo» do Cerro do Castelo de Vale de Gaios (in Vilhena e Grangé, 2008, Fig. 3).

Fig. 9 – Materiais cerâmicos do Cerro do Castelo de Vale de Gaios (in Vilhena & Grangé, 2008, Fig. 3).

Fig. 10 – Massa (ou «esponja») de ferro bruto obtida após processo de redução de minério, proveniente do Cerro do Castelo de Vale de Gaios.