Os velhos castelos de período árabe e a arqueologia medieval de Odemira

Jorge Vilhena

 O que provavelmente melhor define o período medieval de Odemira é o estado de quase absoluto desconhecimento que acerca dele temos. As causas são, fundamentalmente, duas. Desde logo, poucos historiadores se debruçaram sobre este território, dado que os documentos escritos medievos são quase nulos. Quanto aos sítios arqueológicos, que são documentos materiais do período em causa, são às centenas, mas tolhe a sua investigação o débil financiamento, e também o facto de a arqueologia medieval somente ter começado a desenvolver-se nos últimos vinte anos.

O enquadramento histórico

Efectivamente, até ultrapassado o ano mil, são desconhecidos testemunhos escritos ou documentos epigráficos alusivos às terras de Odemira (Quaresma, 2006; Macias, 2006). É como se este imenso território permanecesse, até então, numa invisibilidade de tipo pré-histórico. Seguiu-se uma espécie de proto-história igualmente extemporânea até meio do século XIII, já findo o período islâmico, porquanto somente forasteiros e viajantes distantes, de sul e de norte, deixaram algo escrito sobre a zona antes da anexação pelo reino português, ainda que apenas breve e pontual. O primeiro a referir é Abu Abdallah Yaqut ibn-Abdallah al-Rumi al-Hamawi, simplesmente conhecido por Yaqut ou Iacute (que significa “Rubi”, nome próprio commumente dado a escravos, como ele próprio foi na juventude, sendo, porém, logo aí educado para ser homem culto). Nascido no ano 1179 (574 da Hégira) na cidade de Hama (donde o seu último sobrenome al-Hamawi), Iacute foi um geógrafo sírio de origem grega cristã (razão do cognome, al-Rumi, “o romano”). A partir de 1199, viveu em Bagdade, então capital do Império Abássida, e depois, até à sua morte (não particularmente velho, em 1229), instalou-se sucessivamente nas mais florescentes cidades do Médio Oriente da sua época: Damasco, Mossul, Alepo. Iacute foi, portanto, um homem cosmopolita que viajou muito por todo o mundo islâmico, da Arábia à Península Ibérica, o país chamado de Al-andaluz pelos Árabes. Uma das obras mais importantes deixadas por Iacute foi o Kitab Muʿjam al-Buldân (Livro dos Países), concluída poucos anos antes da sua morte. Trata-se de um compêndio de geografia, etnografia e história do mundo muçulmano, pelo que é uma fonte documental deveras importante para o conhecimento histórico do Al-Andaluz. Iacute utilizou para a redacção obras mais antigas de geógrafos hispano-árabes, entretanto desaparecidas: al-Razi (Córdova, inícios séc. X), al-Bakrî (Córdova, séc. XI), Ibn Ghâlib (Málaga, séc. XII). Concretamente acerca do Gharb Al-Andalus (em português «o ocidente do Al-Andalus» – grosso modo, o correspondente ao sul e centro do actual território português), Iacute parece ter escrito sobre a área de Odemira. É quando refere, laconicamente, que ao navegar para norte nas costas do Garbe depois do cabo de S. Vicente, passava-se por Hawz al-Ryhâna («costa», «praia» do alfoz de Arrifana, a área dos actuais concelhos de Aljezur e Vila do Bispo) e, de seguida, pelo Hawz al-Madra (Fig. 1). Este último território litoral é traduzido pelo historiador António Rei como “alfoz de Mira”, uma vez que, na escrita árabe da época, seria pouca a diferença entre as grafias de al-Madra e de Mîra; pelo menos, a referência de Iacute deverá referir-se a algum topónimo da região de Odemira e do baixo Mira – ambos foram utilizados até Época Moderna para nomear tanto o rio como a vila, sendo que o prefixo Ode- é derivado do termo magrebino wadi («rio», «vale»). Similar é também a grafia de al-Wadhra, terra referida por Iacute como povoação dos distritos de Ocsonoba (Faro), no al-Andaluz, naquilo que pode ser, assim, também menção duplicada a Odemira no mesmo texto, mas sob forma diferente. Tal deturpação dos nomes Mira/Odemira pode ter sido propiciada por erros nas várias transcrições manuais do documento ou devido a equívoco na antiga tradução do nome, com arabização simples de um topónimo local não árabe (Rei, 2005; Macias, 2006; Quaresma, 2006).

Sensivelmente pela mesma altura em que Iacute escrevia o Muʿjam al-Buldân, vindo de sentido contrário, ao viajar por mar de norte para sul a caminho da Terceira Cruzada à Terra Santa em 1190 na esquadra de Ricardo Coração de Leão, um nobre inglês, Roger de Howden, redigiu um roteiro de navegação, do qual existe mais que uma versão. À mais extensa foi dado o título de De viis maris et de cognitione terrarum et montium et de periculis diversis in eisdem (Das vias marítimas e do conhecimento da terra e dos montes e dos perigos que neles há). Trata-se da mais antiga descrição pormenorizada que se conhece da costa atlântica do Garbe, território então mal conhecido para os norte-europeus. Nele, sir Roger refere que, nos domínios do rei de Portugal, a sul de Sines e da ribeira da Junqueira (S. Torpes) estava, a 8 milhas da ilha do Pessegueiro, o «bom porto chamado de Ordune» e «um rio de água doce chamado Ordune»; seguiam-se a mais 35 milhas as fontes de Arrifana e o castelo de Aljezur e, percorridas outras 20 milhas, o cabo de S. Vicente. Noutra versão mais abreviada do mesmo texto, Chronica Magistri Rogeri de Hovedane (Crónica do Mestre Rogério de Howden), a passagem referente ao porto e rio Ordune é mais compreensível e exemplifica como acontecia facilmente deturpação dos nomes estrangeiros de terras: desta vez o texto em latim refere o «portum Deordemire» (Fig. 2), que de novo especifica ser um dos pontos na rota seguida para sul: traduzido, o texto diz «...passando por [...] Espichel, e pelo porto de Alcácer, e por Palmela, e por Sines [...], e pelo porto de Odemira, e por [...] S. Vicente» (Ferreiro Alemparte, 1999; Dalché, 2005; Quaresma, 2006; Silva, 2010).

É possível que um primeiro episódio de avanço e consequente domínio cristão sobre Odemira tenha sucedido antes de 1190, como é referido no De viis maris, onde se afirma que até Lagos eram terras do rei de Portugal — a primeira tomada de Silves e do Arade dera-se em 1189, no ano anterior ao da grande viagem de Roger Howden. Um documento árabe, O admirável no resumo das notícias do Magrebe, escrito pelo marroquino Cabd al-Marrākušī no primeiro quartel do século XIII, refere que «pelo limite poente, que é mar maior, Oceano, há também cidades, como Lisboa, Beja, Sintra, Santiago, Évora e muitas outras, cujos nomes não recordo, que estão na posse de um homem conhecido por Ibn al-Riq» (Macias, 2006). Este era o nome («filho de Henrique») dado a D. Afonso Henriques, para os geógrafos e cronistas do Islão mediterrâneo uma personagem periférica e de importância mínima no teatro dos monarcas dos pequenos reinos peninsulares dos séc. XI-XII que, fossem cristãos a norte ou das taifas a sul (como os reinos de Badajoz ou de Silves), as mais das vezes eram efémeros.

Efectivamente, várias dessas terras referidas por al-Marrākušī foram assaltadas na ofensiva cristã oportunista realizada a partir de 1158-1159 até ao Baixo Alentejo (queda de Beja em 1162), alavancada na fraquezas causadas pelas dissensões internas dos poderes islâmicos, seguida da campanha de raids de razia e pilhagem do «cão» (assim o qualificam as fontes árabes) Geraldo-Sem-Pavor até 1172. Mas esta primeira tomada lata do Alentejo meridional pelos Portugueses foi eficazmente anulada pela contra-ofensiva movida até ao Tejo pela dinastia berbere almóada em 1191, sob mando do emir dos crentes, Iacube Almançor. Por mais trinta anos, bem guardadas pelas espadas marroquinas, as terras muçulmanas do Baixo Alentejo ficariam numa paz relativa (Macias, 2006).

Sobre o fundo da conhecida e antiga lenda, já registada em 1708, de um ataque à Odemira islâmica por tropas do primeiro rei português que teriam subido o rio Mira em barcos camuflados nos canaviais (nessa lenda, um grito de rebate dado ao alcaide mouro do castelo «Ode, mira para os inimigos...!» serve de explicação fantasiosa para a origem do nome da vila), Augusto Pinho Leal acrescentou uma data coincidente com a referida ofensiva cristã ao sul, 1166, e um líder, o bispo D. Soeiro (Costa, 1708; Leal, 1875; Quaresma, 2003). Mas nenhuma base documental conhecida sustenta esta revelação da historiografia nacionalista dos finais do século dezanove. Todavia, não seria improvável que tenha acontecido uma ou mais vezes ataque naval a Odemira, cujo castelo pode ter sido edificado precisamente para defesa do fundo do estuário (e do primeiro vau) do Mira contra forças que, eventualmente procedentes do mar, buscassem internar-se no território. Esta ameaça não seria negligenciável no séculos XII e XIII: a norte, Alcácer foi atacada em 1217 pela armada cristã e em vão socorrida pela frota árabe, que subiram o Sado; a sul, o mesmo acontecera já antes em 1189 a Silves, assediada através do Arade pelos navios dos cruzados (Garcia, 1986; Macias, 2006; Quaresma, 2006).

Finalmente, a poucos anos do ignominioso desfecho do poder muçulmano no Garbe, Odemira terá sido incorporada pela força no território português, com outros territórios circunvizinhos submetidos pelos cavaleiros vilãos da milícia da Ordem de Santiago de Espada. Isto em duas datas possíveis. A primeira seria no reinado de Sancho II, circa 1234-1238, em continuidade da queda de Aljustrel, cujo território abrangia a área de Santiago e Sines até ao mar e à foz do Mira. A segunda teria sido uma década depois, já no reinado de Afonso III, circa 1245. Este foi o ano da doação simultânea feita ao bispo do Porto, Pedro Salvadores, do castelo de Odemira pela Ordem de Santiago da Espada e da vila de Marachique, no actual concelho de Ourique, pelo próprio rei. Estas conquistas foram um derradeiro passo no apertar do cerco aos enclaves de Faro e de Silves do reino taifa de Niebla, conquistados em 1249. Ainda nesse mesmo ano foi também tomada a última fortaleza muçulmana, Aljezur, e provavelmente de toda a serra de Monchique — ambas logo a sul do território de Odemira. Tendo em conta o facto de as doações serem muitas vezes feitas imediatamente após a conquista ou mesmo antes desta suceder, uma data entre 1244 e 1249 para o acometimento final a Odemira afigura-se mais provável (Macias, 2006; Quaresma, 2006).

Não existe qualquer relato credível de ataque e resistência, rendição negociada ou conquista sangrenta do castelo de Odemira, como tantas vezes aconteceu em tantas cidades do Garbe — para exemplo, basta referir o caso do massacre do cortejo da população desarmada de Aljezur contada na Crónica dos Cinco Reis. A incitação contida na bula papal de 1241 à guerra santa por mar tanto quanto por terra para a tomada definitiva do sul do Garbe deve ter tido consequências para o castelo de Odemira, situado no braço de mar do estuário do Mira e, muito provavelmente, então dependente de Silves. Depois da «reconquista», foi o corso punitivo hispano-árabe e magrebino a flagelar as povoações da costa tomadas por cristãos: Sines, a maior localidade da costa do Alentejo, permaneceu assim uma aldeia até ao século XIV (Garcia, 1986; Correia, 2013).

Concretas referências escritas portuguesas à vila de Odemira surgem, portanto, somente em meados do século XIII, com a doação de 1245 dos espatários do «castelo de Odemira» ao bispo do Porto, incluindo os direitos sobre as «entradas e saídas», ou seja, os rendimentos do comércio do porto marítimo-fluvial. Na década anterior, em 1235, a delimitação ocidental do território de Aljustrel, pouco antes subjugada pelos cristãos, refere lugares confinantes com o território de Odemira, que são de localização mais ou menos problemática: «cumes de Ameixial» (a nordeste de Odemira, na freguesia de Relíquias), «cumes de Benelgat» (?), «açougues de Benezaval» (S. Luís?), «escarpa» ou «leito» «do Torgal» (ribeira do Torgal ou serra de S. Luís), Esteiro do Comendador (Corgo do Porto da Mó – Gama, na margem direita do baixo Mira) e «pelo meio do rio Mira até ao mar» (entenda-se, a parte vestibular do estuário) (Quaresma, 2006; Id., 2010). Se a incorporação de Odemira no reino português se deu apenas dez anos depois, c. 1245, essa delimitação ocidental de Aljustrel no paralelo da foz do Mira e de Ameixiais pode ter constituído, por uma década, a fronteira entre muçulmanos e cristãos; se não, a fronteira esteve entre 1234-35 e 1249 mais para sul, na parte meridional do território odemirense, provavelmente confrontando com as terras da Aljezur muçulmana pela ribeira de Odeceixe, ou pelo próprio estuário do Mira, logo frente ao castelo de Odemira.

Em 1256, com a vila já na posse do rei português Afonso III, o foral de Odemira (Fig. 3) confirmava, pouco mais ou menos, os mesmos limites para o seu termo assinalados na demarcação de 1235 de Aljustrel pelos «cumes de Ameixiais» (Relíquias), bem como o seguimento a leste e a sul: estrada de Garvão a Sabóia como divisória com Marachique, Benafátima (Nave Redonda/Monchique), Arela (serra da Brejeira) e, daí, pela ribeira de Odeceixe, até ao mar (Quaresma, 2006; Id., 2010). Porém, a doação de 1245 de Marachique «com seus termos novos e antigos» parece significar que houve alteração nas fronteiras, pelo que os limites do termo cristão não seriam necessariamente coincidentes com os do anterior alfoz do período islâmico.

O concelho primevo de Odemira definido no foral de 1256 tinha um território de forma quadrada de aprox. 950 km2, circunscrito entre o mar, o baixo estuário do Mira, serra do Cercal, divisória de bacias Mira–Sado (Ameixiais, horst de Relíquias e cumeada Carrascos/Portela da Marixica), orla poente do Campo de Ourique, abas norte da serra de Monchique e a profunda depressão da ribeira de Odeceixe. Como hoje, o concelho era atravessado na diagonal pelo Mira, e nele Odemira assumia uma dupla posição central, geográfica e administrativa, com duas enormes freguesias: S. Salvador e Santa Maria. Confrontava a oriente (na Portela da Marixica?) com Marachique, nome da antiga povoação do Castro da Cola, cujo concelho seria extinto no séc. XIV, daria origem aos de Almodôvar e de Ourique, sendo esta última vila senhora, até ao séc. XIX, das actuais freguesias do concelho de Odemira de S. Martinho das Amoreiras e Santa Clara-a-Velha (Viana, 1962; Macias, 2006; Quaresma, 2006; Id., 2010).

A particularidade marítimo-fluvial de Odemira patente na doação de 1245 e no foral de 1256 manifesta-se mais uma vez no reinado de D. Dinis, com a doação em 1319 do senhorio do castelo e da vila ao almirante Manuel Pessanha, genovês contratado pelo rei para tratar da reorganização da armada real, mas que, paradoxalmente, lhe omitia direito aos rendimentos do comércio marítimo do porto da vila, reservados para a coroa (Quaresma, 2006).

Nos poucos e tardios dados demográficos relativo à Idade Média, Odemira surgia em 1385, e de novo em 1422, no arrolamento do número de besteiros com dimensão similar a Mértola, Santiago do Cacém ou Sines, e superior, por exemplo, a Aljustrel, Almodôvar ou Ourique, pese alguma oscilação dos números. No posterior censo de 1527-1532, observa-se quase a mesma situação: com 191 moradores (núcleos de moradores ou vizinhos; para ter uma ideia aproximada da população real, o número de moradores deve ser multiplicado por quatro) na vila e 275 no seu termo, o concelho de Odemira, com um total de perto de 2.000 pessoas, era mais povoado que os de Aljustrel, Castro Verde ou Sines, entre outros, quase tanto quanto Almodôvar e Ourique, mas já menos que Mértola e Santiago. Povoamento muito disperso, portanto, entre as serras do concelho, onde apenas dois pequenos povoados se destacavam: Pé-do-Serro (que pouco depois viria a ser S. Teotónio) com 22 moradores, e Pereiro (Relíquias) com 12. Em torno, nas actuais freguesias periféricas que só muito mais tarde viriam a incorporar-se em Odemira, havia mais gente segundo o mesmo censo de 1532: Amoreiras (S. Martinho) com 22 moradores, Vale de Santiago com 29, Vila Nova de Milfontes (fundação de 1496) com 77 na soma da vila e do termo. Em Colos, contavam-se 19 habitantes do povo de Corte Canelas entre os 48 dispersos pelo termo, a que somavam os 135 moradores do núcleo urbano principal (Quaresma, 2006). Este último surge com o nome de Colos de Benaguaz em documento de 1250 na descrição dos limites do concelho de Marachique, sendo novamente referida em 1383 na Crónica de João I de Fernão Lopes, já apenas como Colos. Teria então uma igreja, edifício que foi completamente reconstruído no princípio do séc. XVI para dar lugar à actual igreja matriz da vila, uma vez que Colos foi elevada a sede de concelho em 1499 (Quaresma, 1999). Contrariamente ao referido em alguns estudos, a arqueologia (foram realizadas escavações arqueológicas no centro histórico em 1999 e 2005) não descortinou indícios de povoamento em período islâmico nem de um suposto antigo castelo na área urbana primitiva do Alto de Colos, que parece ter sido povoação não murada de fundação tardo-medieval numa colina anteriormente ocupada em época romana (Guerreiro, 1987; Torres, 1992; Vilhena, 2014).

Os vestígios arqueológicos

Dispersos pelo território de Odemira, uma série de topónimos assesta a localização ou a proximidade dos mais perenes e marcantes sítios do período medieval islâmico do território de Odemira. São as torres e torrinhas, os castelos velhos e as cidades dos mouros. Correspondem a ocupações de amuralhadas nos cumes de colinas facilmente defensáveis e, na maioria, estrategicamente situadas em posição dominante sobre espaços de circulação, produção agro-pastoril ou de outros recursos específicos, onde sobressai a actividade mineira (Vilhena, 2005). Demonstram igualmente a real necessidade de fortificação e defesa do território perante o clima perpétuo de insegurança provocado desde o séc. VIII pelas querelas sem fim e guerras intestinas entre estados e facções muçulmanas, pelas incursões por mar dos majus normandos e dos cristãos peninsulares que sucediam desde meados do séc. IX, e pela ameaça em crescendo dos avanços portugueses para sul desde meados do séc. XII (Garcia, 1986; Correia, 2013).

São em número de meia dúzia os pequenos castelos rurais de período islâmico de Odemira, por vezes instalados sobre antigos povoados fortificados pré-históricos ou da Idade do Ferro, e quase todos abandonados, aparentemente, ainda antes da conquista portuguesa do séc. XIII. Cada um deles corresponde a um antigo burdj (em português: torre) ou hisn (castelo rural; esta última designação árabe ficou memorizada nos topónimos Asno, Asna ou Asneira), segundo as tipificações que surgem nas fontes escritas árabes. Acrescem os diversos sítios chamados de Atalaia, evolução do árabe at-tâlai’a, em português sítio de «espiar» ou «sentinela» (Catarino, 2002; Macias, 2006; Quaresma, 2006; Vivas e Oliveira-Leitão, 2009).

As funcionalidades das torres e castelos dos mouros terão sido, todavia, variadas: pequenas cercas comunitárias para armazenamento de cereais e refúgio ocasional de populações das alcarias rurais e seus gados durante episódios de maior insegurança (Senhora das Neves, Castelo das Bouças/Almargens, Torre de Odeceixe), pequenos castelos de residência de senhores feudais (talvez o Castelo da Caneja), castelos de controle de recursos específicos, nomeadamente, mineiros (Castelo de Vale Feixe) ou vias (Torre da Cidade dos Mouros de Corte Brique), um castelo estatal (Vale de Gaios) e um castelo ribeirinho, Odemira, o único que teve continuidade de ocupação no período cristão pós-reconquista e deu génese a um núcleo urbano.

O castelo de Odemira deverá ter sido sede de alfoz apenas a partir do século XII (coordenadas geográficas: 37º35’50,20’’ N 8º38’35,40’’ O). A ocupação do sítio no período islâmico tardio é demonstrada por alguns materiais arqueológicos encontrados dentro e em volta do perímetro da colina do Cerro do Castelo, onde o edifício castrense medieval, já destruído nas sua quase totalidade, ocupava a sensivelmente a área do actual edifício da biblioteca municipal, construído em 1997 (Figs. 4 e 5). Possivelmente, foi de início apenas um pequeno castelo de tipo hisn, composto de uma torre rodeada de uma pequena cortina de muralha, estabelecido numa colina dominante sobre o Mira com objectivo de controle da navegação do rio e da sua travessia pelo trânsito terrestre (Figs. 6 e 7). Não se sabe se existiu povoação adjacente ao castelo no período islâmico ou se também foi murada, como o terá sido durante a baixa Idade Média. Actualmente, sobejam apenas alguns possíveis panos da muralha (Fig. 8) e uma torre da porta da cerca urbana (Fig. 9), ambos de cronologia e genuinidade incertas. Tampouco se sabe se a colina do Cerro do Castelo de Odemira estava ocupada antes do século XII (Macias, 2006; Quaresma, 2006; Vilhena e Grangé, 2007; Vilhena, 2011).

Apenas em três dos referidos castelos velhos se realizaram até agora escavações arqueológicas que permitem caracterizar um pouco melhor as ocupações fortificadas do período islâmico: Vale de Gaios, Torre de Odeceixe e Bouças/Almargens.

Até ao século XI, o sítio maior e cabeça de terra do território do baixo Mira foi o Cerro do Castelo de Vale de Gaios (S. Luís), uma imponente fortificação fundada no século IX, provavelmente por iniciativa e sob dependência estatal para controle da produção mineira da área de S. Luís. As defesas deste castelo foram melhoradas nos séc. XI ou XII com a reformulação da entrada, tendo sido adicionada uma porta em «cotovelo», uma solução de arquitectura militar mais evolucionada (Figs. 10 e 11). Pensa-se que corresponde à antiga «cidade» de Targhala referida por Iacute no Muʿjam al-Buldân (Vilhena e Grangé, 2007; Id., 2011; Grangé e Vilhena, 2009; Vilhena, 2011).

A sul, na fronteira da ribeira de Odeceixe, já do lado do concelho de Aljezur, foi há poucos anos escavado, na sua quase totalidade, um pequeno castelo, a Torre de Odeceixe ou Torre da Moura (coordenadas geográficas: 37º25’40,90’’N 8º45’12,70’’O), junto do Moinho da Asneira. Está sobre a margem esquerda do estuário da ribeira de Odeceixe, que outrora foi também navegável até pelo menos ao local da ponte rodoviária e dos lugares de Montes da Barca e Porto da Torre, na zona do castelo. Como os referidos topónimos indicam, a zona é de tradicional passagem do vale, ou mesmo de antigo cais fluvial. A Torre de Odeceixe ou da Moura é composta de um grande torreão de planta circular, instalado no ponto mais alto de um pequeno esporão elevado (em mais de 40 m) sobre o vale da ribeira de Odeceixe. Do lado poente do torreão sai um pano de muralha igualmente de traçado circular. Ambos eram circundados por um fosso escavado na rocha, pelo menos no flanco do torreão, de forma a dificultar o acesso ao local pela cumeada a sul. No interior deste recinto, existem diversas casas dispostas em plano radial em torno de um pequeno pátio central e cujas paredes meeiras encostam à face interna da muralha. A torre e a muralha eram originalmente rebocados de argamassa de cal e areia, pelo que, como comum a muitos dos castelos do período islâmico tardio, o aspecto geral era o de um castelo branco. A Torre de Moura de Odeceixe foi ocupada ao longo do século XIII, possivelmente até inícios do seguinte. A fortificação data, portanto, do final do período islâmico e das primeiras décadas da dominação portuguesa do território. Pensa-se que esta estrutura castrense seria simultaneamente cerca de refúgio ocasional da população local dispersa pelo vale, celeiro comunitário fortificado, sítio de controle da passagem e navegação do estuário de Odeceixe e, plausivelmente, guardião de fronteira do rio Seixe no período conturbado da derradeira fase da «reconquista» (Gomes e Gomes, 2011).

Anterior em quatro séculos à Torre de Odeceixe é o Castelo Velho ou Cidade dos Mouros das Bouças/Almargens (St.a Maria, Odemira) (coordenadas geográficas: 37º38’51,2’’ N 8º33’40,00’’ O). Este sítio da Alta Idade Média situa-se num vale fértil, a ribeira da Capelinha, densamente povoado durante todo o período islâmico (Almargens procede da palavra árabe de origem persa al-mardj para pradaria, campo). Neste vale, coincidente com a Falha de Messejana, rica em filões de ferro e manganês, registam-se diversos sítios de cronologia medieval com actividades paleo-metalúrgicas de produção de ferro, incluindo o próprio Cerro do Castelo (Fig. 13). Sondagens arqueológicas realizadas no ano de 1999 permitiram precisar que a cronologia da única ocupação do Castelo Velho das Bouças se deu nos séculos VIII-IX, no início do domínio islâmico. Este é um período genericamente mal conhecido no Sul. Documentou-se a presença de uma muralha pouco expressiva que, pelo terço superior das encostas, cerca as duas plataformas desniveladas do cume do cerro. Nos flancos oeste, leste e norte (visíveis do vale subjacente à colina, onde corre a Estrada Nacional 263 paralela à ribeira da Capelinha), esse muro foi edificado em alvenaria de pedra com um única face, voltada ao exterior (a face interna encosta num socalco escavado na vertente muito íngreme). As pedras da muralha foram dispostas em aparelho de tipo «espinha de peixe» no tramo superior do alçado, segundo uma técnica de edificação comum na arquitectura defensiva da Alta Idade Média vinda da tradição do opus spicatum da construção romana (Fig. 14). Já no flanco menos visível do Cerro do Castelo voltado à cristas mais altas a sul, a cerca parece ter apenas sido construída com terra e/ou paliçada, pelo que esta cinta mais fraca da antiga fortificação não era perceptível do vale. Saliente-se que dada a reduzida altura, que não ultrapassaria um metro e meio, dificilmente a muralha do Cerro do Castelo poderia ser considerada uma defesa sólida e eficaz. No interior do recinto murado das Bouças, foi escavada parte de uma cabana ou alpendre, da qual foram expostas duas paredes articuladas em ângulo recto, com socos de fiadas paralelas de pedras fincadas em cutelo no subsolo, sendo o restante alçado erguido provavelmente com entramado de ramagens e terra. Para o piso, rebaixado, utilizou-se uma amálgama de argila cozida e cacos de recipientes cerâmicos dos séculos VIII/IX d.C. para preencher uma fossa aberta na rocha em toda a extensão da cabana. No canto das duas paredes, existia uma lareira sobre placa de argila endurecida, saliente no piso da cabana. A técnica construtiva empregue nesta construção é absolutamente arcaizante, encontrando paralelos muito próximos nos fundos de cabanas do início da Idade do Ferro, construções aproximadamente mil anos mais antigas (Vilhena e Grangé, 2008; Id. 2011; Vilhena, 2014).

Os velhos castelos de período árabe de Odemira guardavam pessoas e bens. Entre estes últimos, parece ter existido uma preocupação com o controle dos recursos mineiros e da actividade metalúrgica, em particular no caso do castelos de Bouças/Almargens, Vale de Gaios e Vale Feixe. A zona central e litoral do território é atravessada pela Faixa Ferro-manganísefera de Cercal-Odemira, parte integrante da Faixa Piritosa Ibérica. Diverso tipos de jazidas de ferro e manganês (jazigos filoneanas, xistos impregnados, conglomerados ferruginosos), bem como chapéus-de-ferro com minérios poli-metálicos (chumbo, cobre e prata), foram intensamente explorados no período islâmico. Tem vindo a ser identificada uma pletora de pequenos pontos de extracção em cortas a céu aberto, como Gomes Eanes (cobre) ou lavra em galerias de minas subterrâneas, como a de Pendões (ferro, manganês, cobre). As principais jazidas foram largamente exploradas no ciclo mineiro ocorrido entre 1860 e 1900, e mais de uma dezena dos pedidos de licenças de exploração submetidos nessa altura, neste distrito mineiro, reportam-se a locais com vestígios de trabalhos antigos de minas e de beneficiação de minérios metálicos (Vilhena e Grangé, 2011).

No período medieval, a produção paleo-metalúrgica na região de Odemira foi muito disseminada por ferrarias de pequena escala, ao contrário da produção concentrada dos grandes centros siderúrgicos do anterior período romano. Consequência dessa actividade, um pouco por toda a parte se encontram pequenas manchas de escórias negras. Normalmente, estes escoriais estão muito próximos das fontes de minério. Correspondem a antigos locais de redução de minérios ferrosos a massas de ferro-esponja em bruto, sempre em quantidades modestas, por meio de operação de pequenas fornalhas expeditas de tipo baixo-forno, pouco mais que simples covas abertas no solo e revestidas por uma calota de argila. Estas fornalhas eram operadas com a técnica de sangramento de escórias liquefeitas (quebra das paredes da fornalha para separação por derrame das escórias em fusão), o que produziu as típicas placas de jorra que, depois de arrefecidas, solidificavam no solo como lava. Perante os dados (ainda em colação), a zona de Odemira poderá mesmo vir a revelar-se como um dos principais centros siderúrgicos do sul do Garbe islâmico (Grangé e Vilhena, 2009).

Recentemente, foi escavada uma destas ferrarias, Chaminé 1 (S. Luís), onde se detectaram intricadas estruturas abertas no subsolo correspondentes a duas ou três pequenas fornalhas, suportes de foles e bigornas de uma pequena ferraria medieval que, segunda se calcula, produziu em 30 a 40 operações de redução de minério, 140 a 300 kg de ferro, deixando no local quase 1 tonelada de escórias. As fases subsequentes da cadeia de produção siderúrgica não foram documentadas no local. Provavelmente, massas de ferro em bruto, depurado ou não, era assim expedidas para outros locais, onde o ferro esponja era refinado e forjado em ferramentas (Vilhena e Grangé, 2011). Particularmente intensa durante a Idade Média, a produção siderúrgica de Odemira teve um absoluto e inexplicável declínio nos séculos XIV a XVI.

A toponímia mostra ainda uma série de lugares com nomes que apontam no sentido de um povoamento medieval de origem árabe muito disperso por pequenos lugares rurais. São exemplos: Alcaria (do árabe al-qarya, com significado parecido ao de povoação), Almuinha ou Alminha (do árabe al-munīa para casal ou herdade), Corte (com origem no kurt empregue com o significado de «casas» em textos árabes do século XI, como Idrisi), Ben- (Benamor, Bem Casados, etc.) com origem no antropónimo de significado clânico/tribal magrebino ben («filho de»). Existem igualmente nomes com origem romance1, como as terminações em –ique, presentes em Marachique, Ourique, Totenique, Corte Brique, etc., que se deve à imobilização no Sul islamizado da desinência latina –icu em –ique (enquanto no Norte do país esse mesmo sufixo evoluiu para –iz ou –igo, como Romariz ou Romarigo) (Catarino, 2002; Quaresma, 2006; Vivas e Oliveira-Leitão, 2009).

A investigação arqueológica no terreno do concelho de Odemira tem permitido identificar muitos desses locais, duas centenas e meia de pequenos sítios habitados na época medieval, com especial predominância dos que datam do período islâmico tardio. Esse povoamento bastante disseminado, quase omnipresente, contrasta bastante com a quase inexistência de sítios da Antiguidade Tardia e de período visigótico (o que não é anormal no quadro do Sul do território português), e com a debilidade do anterior povoamento romano. É como se apenas no decorrer da Alta Idade Média tivesse aumentado exponencialmente o povoamento do território de Odemira, ou se tivesse generalizado a sua colonização (Vilhena, 2014).

Embora os estudos arqueológicos no território de Odemira remontem à década de 1870, as primeiras intervenções de estudo de sítios arqueológicos medievais deram-se, contudo, apenas na década de 1990, com a aplicação do protocolo de colaboração entre o Departamento de Arqueologia do antigo Instituto Português do Património Cultural e as empresas de celulose, no âmbito das medidas de minimização de impacte das extensíssimas florestações de eucalipto, na altura já no seu segundo ou terceiro ciclo de plantio na região, quando pouco havia já a salvar nas áreas eucaliptizadas. Quase exclusivamente incidentes sobre as freguesias de Santa Clara-a-Velha e Sabóia, estes trabalhos permitiram caracterizar dois sítios que tipificam o povoamento rural medieval disseminado pelo território mais interior (Vilhena, 2014):

Vale Esteveira 1 (Sabóia), uma construção rectangular de 14 x 4 m com eixo maior orientado NO-SE, edificada com muros rectilíneos de pedras de xisto ligadas com barro, abertura de entrada voltada a sudoeste; tinha cobertura de materiais perecíveis e chão de rocha de xisto nivelada. Sem telhas ou fragmentos de cerâmica utilitária, ilustra a sobriedade e simplicidade que podem ter estas estruturas medievais que, à semelhança dos vizinhos sítios de Vale Esteveira 2 e 3, parecem datar do período islâmico tardio, numa zona com alguma densidade de povoamento durante essa época.

• Corte Brique 2 (Luzianes), chamada de «Casa dos Mouros», uma estrutura de funcionalidade desconhecida, que a tradição local recorda ter tido, até à década de 1920, paredes de pedra intactas. De metade do alçado para cima, as paredes inflectiam para dentro até se tocarem e, assim, formariam a cobertura do edifício. A porta era aberta a noroeste e havia uma única janela a sudoeste. Uma sondagem arqueológica realizada em 1990 no local permitiu identificar um muro de pedra assente sobre um soco regular de lajes e argila que, por sua vez, assentava sobre uma camada nivelada de argila vermelha endurecida que preenchia uma depressão na rocha base e servia simultaneamente de pavimento interior da construção. O materiais encontrados em escavação resumiam-se a fragmentos de telhas com decoração digital ondulada, típica do período islâmico, mas outros achados cerâmicos de superfície, abundantes, datam de período romano. Próximo, no sítio de Corte Brique 1, encontraram-se, à superfície do solo, fragmentos de cerâmicas com vidrado melado, também características do período islâmico.

Frequentemente, as típicas cerâmicas vidradas do período islâmico tardio surgem associadas ao principal «fóssil director» dos sítios da Alta Idade Média, fragmentos de grandes talhas de barro com marcas de cordões impressos, técnica simultaneamente decorativa e de modelação da peça, na tradição dos grandes dollia de período romano. É provável que muitas das alcarias e cortes tivessem sido ocupadas e reconstruídas ao longo de centenas de anos, pelo que se podem encontrar materiais datáveis de vários séculos.

Próximo do castelo de Odemira, foi escavado em 2002 e 2007-8 um sítio da fase média do período islâmico, Várzea da Salamoa, situado num terraço sobre o Mira ocupado em grande parte pelo actual cemitério da vila (Fig. 15) (coordenadas geográficas: 37º35’31,80’’N 8º38’42,88’’ O). Seria o local de uma alcaria, cujas casas não se lograram descobrir, porque delas provavelmente nada se conservou. Mas encontraram-se grandes fossas de extracção de barro amarelo para uso em olaria, bem como silos ou tulhas ovóides profundamente escavados no mesmo subsolo argiloso, posteriormente entulhados com detritos e lixos da alcaria: restos alimentares, objectos inutilizados, loiças quebradas (Fig. 16). Apenas algumas foram escavadas, permanecendo no sítio muitas outras ocultas no subsolo. Os materiais cerâmicos, particularmente bem conservados, demonstram que o sítio foi ocupado no século IX/X (Fig. 17). Como na maioria dos sítios de período islâmico de Odemira, também aqui se encontraram vestígios de fabrico de ferro, pois foram encontradas muitas escórias de redução (Vilhena e Grangé, 2008, Grangé e Vilhena, 2009).

Como já havia acontecido ao longo Idade do Ferro, o povoamento medieval não se aproximou muito do mar. Os perigos acarretados pelo corso, pela pirataria e pela guerra naval parecem ter sido a causa deste recuo para o interior. O topónimo costeiro Almograve, praia de Odemira, pode derivar do árabe al-mugāwir («o que faz incursões»), assim como, um pouco a sul, a Entrada dos Mouros a norte do Cabo Sardão e as pontas do Castelo Velho e Lombo do Asno a sul, parecem ser memórias toponímicas dessa realidade de hostilidades marítimas e fortificação do litoral (Quaresma, 2006; Vivas e Oliveira-Leitão, 2009). Por outro lado, vários são os concheiros (sítios de acumulação de restos consumidos de moluscos marinhos) no topos das arribas onde se encontram cerâmicas de período medieval: Ponta da Galhofa, Pedra da Atalaia, Milfontes 2, Foz dos Ouriços, Praia das Galés, et cetera.

Em Consultas (Luzianes), no interior e próximo da antiga via de Sabóia referido no foral de 1256, foi encontrado c. 1990 o mais significativo achado numismático do período islâmico do concelho de Odemira: um lote de centenas de moedas de prata armazenadas, durante mais de mil anos, dentro de uma cantarinha de barro enterrada no chão. Duas delas, as únicas que se conservaram em boas mãos em Odemira (tendo o resto do tesouro sido disperso e vendido até, pelo menos, aos antiquários do Porto, em 1993), são moedas de prata (Fig. 18): um dinham cunhado em Córdoba sob o reinado de Aláqueme I, terceiro soberano do Emirato independente do Andaluz no ano 182 da Hégira (798/799), e outra pelo emir Mohâmede I, quinto emir de Córdova, em 240 (854/855 d.C.). Ambas as moedas mostram as habituais inscrições em escrita árabe com o nome do soberano, local e ano da cunhagem e versículos do Corão. Não se sabe por quanto tempo terão circulado, até à sua ocultação no subsolo (Quaresma, 2006; Macias, 2006). Um segundo tesouro de moedas árabes de prata procedente do interior do concelho de Odemira foi posteriormente encontrado, tendo sido adquirido por um coleccionador de Aljezur. Este achado numismático não foi ainda estudado nem publicado.

Nunca foram investigadas em Odemira, ou no seu território, necrópoles ou sítios de culto de período islâmico ou, em geral, medieval. A igreja matriz de Colos é reconstrução do séc. XVI de um templo mais antigo; todas as demais igrejas de Odemira datam dessa centúria ou são posteriores, pelo menos, as estruturas que hoje em dia nelas se podem apreciar. Sabe-se que Odemira possuía, em meados do séc. XIII — portanto, pouco depois da «reconquista», um santuário cristão de culto mariano, na altura já considerado muito antigo e suficientemente afamado para ser tema de uma das Cantigas de Santa Maria composta entre 1250 e 1270 por Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela (Quaresma, 2006). Mas nada é aparente do conjecturado templo associado a esse santuário, que se julga ter existido na várzea esquerda do Mira, frente a Odemira, talvez no local onde existem ruínas de uma igreja de alvores da Época Moderna ao lado da ponte rodoviária (Fig. 19) (coordenadas geográficas: 37º35’45,74’’N 8º38’42,99’’O). A presença de santuário cristão em terra sob domínio islâmico, como deixa antever a menção à sua antiguidade na cantiga de Afonso X, remete para a presença de moçárabes (cristãos de rito antigo que viveram nos países do al-Andaluz). Estas comunidades moçárabes foram frequentemente antagonizadas pelos conquistadores portugueses, para quem a unificação do cristianismo e disciplinação dos ritos moçárabes constituía um dos objectivos para a empresa da «reconquista». Existe também recordação do local da antiga Igreja do Espírito Santo, no Bairro do Castelo de Odemira, que pode remontar ao período tardo-medieval (Quaresma e Falcão, n.p.). Em S. Martinho das Amoreiras, o edifício meio derrubado da ermida de Santa Anica (coordenadas geográficas: 37º35’41,85’’N 8º22’17,60’’ O), do séc. XVII, está sobre um antigo povoado de altura, não murado, de período islâmico tardio (séc. XII-XIII). Muito perto desta ermida, existem as ruínas (muros, calçada) da chamada igreja velha (por oposição à primeira), que poderá corresponder a um templo medieval (Fig. 20).

Apenas uma necrópole medieval, Reguengo Pequeno (S. Luís), próxima do Cerro do Castelo de Vale de Gaios, é visitável. Compõem-se de seis sepulturas de contornos rectangulares ou antropomórficos, escavadas na rocha de um afloramento, cujas tipologias são similares a uma das formas de enterramento de culto cristão disseminada nos ambientes graníticos do Norte e Centro do país. A cronologia da necrópole de Reguengo Pequeno é imprecisa: as sepulturas são enterramentos de rito cristão, provavelmente posteriores ao século IX-X, pelo que podem ser de moçárabes de período islâmico, ou já do período pós-reconquista (Vilhena e Rodrigues, 2010).

Não se detém qualquer informação sobre a composição étnica e religiosa das comunidades medievais desta região. Parece provável que a maior parte da população da área de Odemira fosse, ao longo de todo o período islâmico, descendente da existente no período pré-islâmico, como em todo o sudoeste do Alentejo: as comunidades eram quase exclusivamente compostas pelos chamados muladis (hispânicos convertidos ao islamismo) e por moçárabes (cristãos que viviam sob domínio muçulmano), estes denunciados pela presença no séc. XIII do antigo e afamado santuário cristão em Odemira. Sabe-se, pela documentação árabe, da presença de uma guarnição militar almorávida no castelo de Marachique (Castro da Cola, Ourique, muito próximo do limite oriental do concelho de Odemira) em meados do séc. XII, o que significa que, pelo menos, os oficiais (e talvez as sua famílias) seriam magrebinos. A documentação de alvores da Época Moderna refere a presença de judeus em Odemira, o que pode manifestar a presença de uma comunidade judaica na vila no período medieval (Macias, 2006; Quaresma, 2006).

1 Idioma(s) românico(s) falado(s) na Península Ibérica na Alta Idade Média, depois do latim e que deu origem ao galaico-português ou ao castelhano, seg. Lindley Cintra. Consultar bibliografia indicada.

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Fig. 1 – Litoral de Odemira ou Hawz al-Madra, segundo a interpretação de A. Rei (2005) do texto de Iacute.

 

Fig. 2 – O portum Deordemire do texto de Roger Howden referia-se, com maior verosimilhança, à enseada de Milfontes, recolhida aquém da foz do Mira.

 

Fig. 3 – Texto foral de Odemira de 1256 no livro da chancelaria de Afonso III. Latim medieval. Conserva-se na Torre do Tombo (in Quaresma, 2006: Figs. 24-25).

 

Fig. 4 – Vestígios do castelo medieval de Odemira; topo noroeste do Cerro do Castelo. Década de 1960 (foto arquivo D.G.E.M.N.).

 

Fig. 5 – Local do castelo de Odemira, estado actual. Comparar com Fig. 3 (foto tomada do mesmo local).

 

Fig. 6 – O castelo de Odemira (à esquerda na imagem) era servido de porto fluvial onde poderiam chegar, até meados do século XX, navios oceânicos de grande tonelagem sem necessidade de contrariar a corrente, uma vez que as marés sobem até ao local. Foto de meados do séc. XX.

 

Fig. 7 – Domínio visual do castelo de Odemira sobre o Mira, a jusante.

 

Fig. 8 – Possíveis restos de muralha do castelo medieval de Odemira (flanco nordeste), aparelho de xisto de coloração mais escura, sobreposto por construções da década de 1970 (reconstituição de castelo) e 1990 (biblioteca municipal).

 

Fig. 9 – Possível torre da porta de entrada na cerca medieval de Odemira - corpo inferior da torre sineira do edifício dos Paços do Concelho (séc. XIX).

 

Fig. 10 – Cerro do Castelo de Vale de Gaios, monte-ilha na depressão do vale da ribeira do Torgal.

 

Fig. 11 – Muros da entrada em cotovelo do Cerro do Castelo de Vale de Gaios (séculos X-XI).

 

Fig. 12 – Domínio visual da Torre da Moura de Odeceixe (muralha em primeiro plano) sobre o paleo-estuário da ribeira de Odeceixe. Vista para poente.

 

Fig. 13 – Cerro do Castelo das Bouças, vista de nordeste.

 

Fig. 14 – Cerro do Castelo das Bouças. Aspecto da muralha do flanco norte.

 

Fig. 15 – Várzea da Salamoa, alcaria islâmica (século IX); sob o cemitério municipal de Odemira. Vista de sul.

 

Fig. 16 – Sítio arqueológico de período islâmico de Várzea da Salamoa (Cemitério de Odemira). Conjunto de fossas para extracção de argila, colmatadas como fossas detríticas da alcaria do séc. IX.

 

Fig. 17 – Pormenor de cantarinha, de modelo dos séculos IX/X, recuperada no interior de uma das fossas abertas para extracção de argila de Várzea da Salamoa. Após a sua finalidade inicial, as fossas foram preenchidas com lixos da área habitacional próxima.

 

Fig. 18 – Moeda árabe do tesouro de Consultas 1 (anverso e reverso); cunhagem de finais do séc. VIII d.C. (in Quaresma, 2006, Fig. 21).

 

Fig. 19 – Ruínas da igreja de inícios de Época Moderna da Senhora da Piedade, em Odemira, na várzea esquerda do rio Mira, ao lado do encosto poente da ponte rodoviária e próximo de um dos marcos da barca de travessia do séc. XVII. Pode ser este o local do santuário moçárabe de Odemira cantado por Afonso X de Castela em meados do séc. XIII, o que apenas trabalhos arqueológicos poderão verificar.

 

Fig. 20 – Edifício da igreja nova de Santa Anica (S. Martinho das Amoreiras), templo de Época Moderna construído sobre sítio de período islâmico e próximo dos muros da «igreja velha».