Vale Boi

Freguesia/Concelho:Budens (Vila do Bispo)

Localização: 37° 5'24.01"N, 8°48'31.18"W

Cronologia: Paleolítico médio e superior

A jazida arqueológica de Vale Boi, concelho de Vila do Bispo, foi localizada em 1998 no decurso do projecto de investigação, A Ocupação Humana Paleolítica do Algarve,financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. No momento da sua localização, o local estava desmatado e à superfície encontravam-se milhares de artefactos de pedra lascada, ossos e conchas. Após contacto com os vários proprietários do terreno no ano 2000 para obtenção de autorização, procedeu-se a um pequeno conjunto de sondagens no sítio arqueológico, do que resultou de imediato o reconhecimento de um sítio de cronologia paleolítica de grande importância. Esta devia-se a dois aspectos paralelos e únicos no território português para uma jazida de ar livre: uma diacronia muito extensa de ocupação humana, que se viria a revelar ainda mais longa do que se estimativa no início dos trabalhos em Vale Boi; e a preservação de materiais orgânicos, nomeadamente ossos e conchas de origem marinha. Pouco tempo depois a importância deste local arqueológico veio a consubstanciar-se no aparecimento de arte móvel paleolítica.

Durante a última década, a jazida foi o centro de vários projectos financiados, nomeadamente por instituições como a National Geographic Society, o Archaeological Institute of America, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, agora no seu terceiro projecto com o título Os últimos Neandertais e a emergência do Homem Moderno no Sudoeste da Península Ibérica, o mesmo que recebeu financiamento da Wenner Gren Foundation em 2011, e que continuará até ao final de 2014.

O sítio encontra-se situado a Leste do vale da Ribeira de Vale de Boi, em frente da pequena localidade, também com esse nome. Com base na dispersão dos vestígios à superfície e nas sondagens arqueológicas estima-se que a jazida arqueológica tenha uma dimensão superior a 10.000 m2.

Os vestígios arqueológicos encontram-se na vertente, entre um dos afloramentos de calcário mais imponentes da zona com cerca de 10 metros de face vertical, e que forma o limite oriental de uma “Nave”, e a aluvião da ribeira, localizada a perto de 50 metros mais abaixo. As ocupações humanas tiveram lugar em dois locais da jazida: junto à face de calcário, naquilo que terá sido um abrigo sob rocha e que há perto de 20 mil anos se terá fragmentado e desabado; e na base da encosta, num terraço plano. Para além destas duas áreas de habitação, a zona intermédia de vertente, marcada por pequenas bacias naturais formadas na rocha calcária de base, foi usada para depósito dos lixos dessas comunidades.

Os vestígios mais antigos de ocupação humana em Vale Boi parecem datar do final do Paleolítico Médio, com uma cronologia com cerca de 33 mil anos. Os dados são ainda escassos, mas para além de utensílios em pedra lascada, pertencentes ao Moustierense, há também dados que mostram que essas comunidades, provavelmente de Neandertais, utilizavam os recursos cinegéticos locais, nomeadamente o cavalo, o veado e o coelho. A sua dieta incluía também marisco de que se destaca as lapas (Patella), as vieiras (Pecten) e o berbigão-de-bicos (Acanthocardia).

Cerca de 500 anos mais tarde, dá-se a chegada dos primeiros homens anatomicamente modernos ao extremo sul da Península Ibérica. Traziam consigo um conjunto de parafernália em pedra lascada característica de uma indústria lítica do Paleolítico Superior, o Gravetense. Os seus utensílios incluíam peças fundamentais para a actividade da caça, através de pequenas pontas de projéctil em pedra e osso provavelmente encabadas em lanças ou dardos. Tinham também um outro conjunto, muito diversificado, de utensílios em pedra, como, entre outros, as raspadeiras, buris, denticulados e furadores, que eram usadas para raspar, cortar, gravar e furar. Talvez um dos utensílios mais interessantes seja a chamada peça esquirolada, geralmente uma pequena lasca que era usada como cunha para fragmentar longitudinalmente os ossos, de forma a extrair o seu tutano, bem como, através do seu aquecimento em meio líquido, retirar as gorduras e proteínas existentes nas zonas esponjosas epifisiais dos ossos. Este processo produziria um alimento altamente energético e que poderia ser guardado durante meses sem se deteriorar, provavelmente em conjunto com carnes secas e fumadas em lareiras que se conhecem também em Vale Boi.

Também nesta altura, a comunidade humana de Vale Boi explorava intensamente os recursos marinhos e terrestres regionais. Para além das espécies já utilizadas anteriormente, foram adicionadas o mexilhão, a amêijoa, berbigão, peixe, golfinho, aves, e também a cabra, o auroque e o javali.

É também nesta fase que aparece a primeira evidência de decoração corporal, com a presença de dentes de animais e inúmeras conchas perfuradas que eram utilizadas como pendentes, provavelmente em colares ou pulseiras. Para isso, utilizavam pequenas conchas de Trivia (conhecidas hoje frequentemente como beijinhos), Litorina obstusata/fabalis, Antalium e Theodoxus fluviatilis, bem como um dente canino superior de veado (Cervus elaphus).

Há cerca de 24 mil anos, uma nova tecnologia é desenvolvida na Península Ibérica, provavelmente no território que é hoje Portugal e que aparecem em Vale Boi, talvez como um dos locais arqueológicos com datações mais antigas para esta fase. É uma tecnologia bifacial do talhe da pedra que proporciona o design de novas pontas de projéctil e que foram utilizadas na invenção do arco e da flecha – é a indústria de pedra lascada conhecida por Solutrense. Estas novas pontas, de pequenas dimensões no Algarve, Andaluzia e Valência, são muito evoluídas tecnicamente, com grande capacidade aerodinâmica e com morfologias muito diversas, sendo essencialmente idênticas na sua forma às pontas de seta mais recentes históricas. São conhecidas como, entre outras, Pontas de face plana, de Parpalló, Folhas de Salgueiro e de Loureiro, encontrando-se em grande diversidade em Vale Boi.

É, contudo, nesta fase, que devido às alterações climáticas ao nível global se dão mudanças radicais na linha de costa e no nível médio do mar: este encontrava-se neste período a cerca de 120 metros abaixo do que está hoje, havendo por isso mudanças importantes na paisagem, das quais provavelmente a mais importante terá sido uma alteração na distância do local do acampamento paleolítico de Vale Boi à linha de costa contemporânea. O impacto desta alteração foi principalmente no que diz respeito aos vestígios faunísticos encontrados na jazida, sendo que os elementos marinhos perderam a importância que tinham na dieta das fases anteriores.

Um dos aspectos mais interessantes da ocupação humana de Vale Boi durante o Solutrense é a dimensão artística. Ainda que esta tenha tido a sua aparição no Gravetense, é durante o Último Máximo Glaciar, há cerca de 22 mil anos, que o fenómeno da arte se torna mais importante em Vale Boi. Não tendo a arte paleolítica de Vale Boi a dimensão da das grutas espanholas e francesas ou do Vale do Côa, no Algarve a arte era executada em pequenas tabletes de xisto local, com gravuras de animais ou símbolos abstractos, como aliás se conhece em outros sítios arqueológicos do Sudoeste europeu.

Com a paulatina subida do mar, iniciada há cerca de 20 mil anos, Vale Boi vê um novo grupo humano utilizar a jazida: é agora campo para um conjunto de pequenas e ocasionais ocupações de caçadores-recolectores magdalenenses, durante cerca de 8 mil anos. Não havendo diferenças fundamentais entre o modo de vida Solutrense e Magdalenense, as alterações radicam apenas na tecnologia e tipologia dos utensílios em pedra: as peças com retoque bifacial e as pontas de flecha desaparecem, para dar lugar a um novo conjunto de pontas de projéctil provavelmente usados como pontas de dardos e como elementos substituíveis de arpões com barbelas.

Com o início do Holocénico, há cerca de 11000 anos, Vale Boi terá sido pela primeira vez abandonado em mais de vinte mil anos. A sua reocupação teve lugar à 8 mil anos. Dessa fase, contudo, conhece-se apenas um dente humano, de cronologia mesolítica, uma vez que a área terá sofrido alterações geomorfológicas importantes, nomeadamente a erosão sedimentar de superfície, onde se encontrariam os vestígios arqueológicos. Porém, há pouco mais de 7 mil anos, Vale Boi foi o palco de uma nova ocupação humana importante: acampou aí um grupo humano com uma nova tecnologia: a da agricultura e pastorícia. Em Vale Boi, a evidência arqueológica demonstra que essa comunidade utilizava os recursos cinegéticos locais a par de espécies domésticas. Como suplemento à dieta com base nesses dois elementos principais, seriam ainda utilizados marisco, peixe e aves.

Os instrumentos modificam-se radicalmente, com a alteração da tecnologia e morfologia dos instrumentos em pedra talhada. Mas é a introdução das cerâmicas, alguma dela decorada, que demonstra que os tempos tinham mudado para sempre.

Bibliografia

BICHO, N.; MANNE, T.; MARREIROS, J.; CASCALHEIRA, J.; PEREIRA, T.; TÁTÁ,F.; ÉVORA, M.; GONÇALVES, C. & INFANTINI, L. (2013) - The ecodynamics of the first modern humans in Southwestern Iberia: the case of Vale Boi, Portugal. Quaternary International, 318, p.102-116.

BICHO, N.; MARREIROS, J.; CASCALHEIRA, J.; PEREIRA, T. & HAWS, J. (2014) - Bayesian modeling and the chronology of the Portuguese Gravettian. Quaternary International (no prelo).

CASCALHEIRA, J. & BICHO., N. (2013) - Hunter-gatherer ecodynamics and the impact of the Heinrich Event 2 in Central and Southern Portugal. Quaternary International, 318, p. 117-127.

MANNE, T.; CASCALHEIRA, J.; ÉVORA, M.; MARREIROS, J. & BICHO, N. (2012) - Upper Paleolithic intensification at Vale Boi, southwestern Portugal. Quaternary International, 264, p. 83-99.

MARREIROS, J. & BICHO N. (2013) - Lithic technology variability and human ecodynamics during the Early Gravettian of Southern Iberian Peninsula. Quaternary International, 318, p. 90-101.

TÁTÁ. F.; CASCALHEIRA, J.; MARREIROS, J.; PEREIRA, T. & BICHO, N. (2014) - Shell bead production in the Upper Paleolithic of Vale Boi (SW Portugal): an experimental perspective. Journal of Archaeological Science, 42, p. 29-41.

Nuno Bicho

Fig. 1 - Vista geral da jazida de Vale Boi.

 

Fig. 2 - Corte geral da jazida de Vale Boi.

 

Fig. 3 - As escavações no sítio de Vale Boi (Vila do Bispo).

Fig. 4 - Pontas de sílex do Gravetense com cerca de 32 mil anos.

Fig. 5 - Pontas seta em sílex do Solutrense de Vale Boi com cerca de 22 mil anos.

Fig. 6 - Plaqueta gravada com 20 mil anos de Vale Boi.