Boca do Rio

Freguesia/Concelho:Budens (Vila do Bispo)

Localização:37° 3'59.19"N; 8°48'37.93"W (C.M.P., 602, Lagos, esc.1:25000).

Cronologia: Período Romano

O estabelecimento romano da Boca do Rio, localizado na freguesia de Budens, concelho de Vila do Bispo foi objecto de intervenções arqueológicas em 1870 por Estácio da Veiga, em 1896 por Santos Rocha, nos anos sessenta do século XX por O. da Veiga Ferreira e J. Formosinho e na década de 80 da mesma centúria por Francisco Alves (Alves, 1997). Apesar das múltiplas escavações arqueológicas, persiste uma grande indefinição cronológica, bem como acentuado desconhecimento sobre a cultura material que foi sendo recolhida e se encontra dispersa pelos Museus Municipais de Lagos e Figueira da Foz e Museu Nacional de Arqueologia. Mau grado as limitações enunciadas, a importância arqueológica do estabelecimento revela-se através de abundante espólio cerâmico (cerâmica comum, ânforas, sigillata, lucernas, cerâmica de construção, apresentando uma telha a marca G. AEMILI SCRIBONI), da presença de vidros e bronzes,e de um tesouro com mais de 1000 numismas atribuídos a Constâncio, Honório e Arcádio (Alarcão, 1988). No que concerne à arquitectura, registou-se a presença de balneário, de compartimentos revestidos a mosaico, de vestígios de pintura a fresco e de várias oficinas de preparados piscícolas (no mínimo, três núcleos). Jorge Alarcão considera este sítio como uma villa, que à semelhança de outras villae algarvias (Edmondson, 1987), como Quinta do Marim (Tavares da Silva et al., 1992), assentavam a sua economia em estratégia de diversificada exploração de recursos terrestres e marinhos e na valorização de boas condições portuárias, confirmando a descrição que nos foi deixada por Estrabão do aro litoral que do Estreito de Gibraltar se estende até ao Cabo de São Vicente:

A Turdetânia é uma região extremamente próspera; e porque produz todas as coisas e em grande quantidade esta prosperidade é duplicada pela exportação; porque o que sobra dos produtos vende-se facilmente dado o grnde número de navios mercantes. Isto torna-se possível graças aos rios e também aos estuários que, como já disse, parecem rios e como rios são navegáveis, não só com barcos pequenos, mas também com barcos grandes, desde o mar até às cidades do interior, porque é plana em grande extensão toda a costa entre o Cabo Sagrado e as Colunas” (Estrabão III, 2, 4).

O topónimo de Boca do Rio revela a localização estuarina deste estabelecimento romano. Com efeito, situa-se na margem do paleo-estuário da Ribeira de Almadena, actualmente barrado por cordão dunar. Na Ribeira de Almadena confluem as Ribeiras de Budens, Vale de Boi e Burgau.

Francisco Alves (1997) atribui ao sítio da Boca do Rio a categoria de vicus, proposta que só um conhecimento mais aprofundado da rede de povoamento do Barlavento algarvio na época romana poderá ou não confirmar. Existe pouca informação sobre a organização territorial do Algarve romano entre Ossonoba e o Promontorium Sacrum. Destacam-se as aglomerações urbanas de Ipses (Alvor?), Portus Hannibalis1 e Lacobriga (Monte Molião/Lagos)2. Não é improvável que Lacobriga tenha obtido o estatuto administrativo de civitas, a terceira a juntar às civitates de Balsa e de Ossonoba criadas com Augusto (Mantas, 1997; Alarcão, 1988), o que constituiria uma malha administrativa melhor distribuída e integradora do extremo ocidental algarvio.

Nos anos sessenta do século XX, este sítio arqueológico foi classificado como Imóvel de Interesse Público (D. L.nº 129/77 de 29 de Setembro) e a sua zona especial de protecção, definida pela Portaria 90/91 de 4 de Setembro.

1As dragagens da foz do Arade têm revelado abundante material anfórico, o que se coaduna com dinâmica portuária. As produções dos séculos II e I a. C., sobretudo da ânfora Maña C2b, encontram-se bem representadas (Tavares da Silva et al., 1987; Diogo, Cardoso & Reiner, 2000)

2Ver: Mantas, 1997; Arruda, 2007.

Bibliografia

ALARCÃO, J. de (1988) - Roman Portugal: Gazetteer. 6. Évora, 7. Lagos, 8. Faro. Vol. 2, fasc. 3. Warminster: Aris & Philips lda.

ALVES, F. (1997) - Em torno dos projectos da Boca do Rio e do Océan. Setúbal Arqueológica, 11-12, p. 225-239.

ARRUDA, A. M. (2007) - Laccobriga e o seu territorio. A ocupação romana na baía de Lagos. In Laccobriga. A Ocupação Romana na baía de Lagos. Lagos: Câmara Municipal, p. 7-47.

ARRUDA, A. M.; SOUSA, E.; BARGÃO, P. & LOURENÇO, P (2008) - Monte Molião (Lagos): resultados de um projecto em curso. Actas do 5º Encontro de Arqueologia do Algarve (Xelb, 8 (1)), p. 137-168.

DIOGO, A. M.D.; CARDOSO, J. P. & REINER, F. (2000) - Um conjunto de ânforas recuperadas nos dragados da foz do rio Arade, Algarve. Revista Portuguesa de Arqueologia, 3 (2), p. 81-118.

EDMONDSON, J. C. (1987) - Two industries in Roman Lusitania. Mining and Garum Production (BAR Int. Series 362). Oxford: Archaeopress.

ESTRABÃO (Trad. de H. L. Jones) - The Geography of Strabo, II. Londres, 1960.

MANTAS, V. Gil (1997) - Os Caminhos da Serra e do Mar. In M. F. BARATA (ed.), Noventa Séculos entre a Serra e o Mar. Lisboa: IPPAR, p. 311- 326.

MANTAS, V. Gil (1997) - As Civitates: Esboço da Geografia Política e Económica do Algarve Romano. In M. F. BARATA (ed.), Noventa Séculos entre a Serra e o Mar. Lisboa: IPPAR, p. 283- 310.

MEDEIROS, I. E. & BERNARDES, J. P. (2012) - Boca do Rio (Budens, Vila do Bispo). Paisagem e Arqueologia de um sítio produtor de preparados de peixe. Portugal Romano.com - Revista de Arqueologia Romana em Portugal, Ano I, N.º 0, p. 6-9. In http://www.portugalromano.com/revista/

ROCHA, A. dos Santos (1897) - Notícia de algumas estações romanas e árabes do Algarve. O Archeólogo Português, 2, p. 77-79.

ROCHA, A. dos Santos (1905) - O Museu Municipal da Figueira da Foz (Catálogo geral).

SANTOS, M. L. E. da V. A. dos (1971) - Arqueologia Romana do Algarve, 1. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses.

SANTOS, M. L. E. da V. A. dos (1972) - Arqueologia Romana do Algarve, 2. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses.

TAVARES DA SILVA, C.; COELHO-SOARES, A. & SOARES, J. (1987) - Nota sobre material anfórico da foz do Arade (Portimão). Setúbal Arqueológica, 8, p. 203-219.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J. & COELHO-SOARES, A. (1992) - Estabelecimento de produção de salga da Época Romana na Quinta do Marim (Olhão). Resultados preliminares das escavações de 1988-89. Setúbal Arqueológica, 9-10, p. 335-374.

VEIGA, S. P. M. Estácio da (1910) - Antiguidades Monumentaes do Algarve. O Archeólogo Português, 15, p. 209-233.

VIANA, A.; FORMOSINHO, J. & FERREIRA, O. da Veiga (1953) - De lo Prerromano a lo Arabe en el Museo Regional de Lagos. Archivo Español de Arqueología, 26, p. 113-138.

VIEGAS, C. (2011) - A Ocupação Romana do Algarve (Estudos & Memórias, 3). Lisboa: Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ).

Joaquina Soares

Fig. 1 – Localização do estabelecimento romano da Boca do Rio na Carta Militar, esc. 1:25000 (Folha 602).

Fig. 2 – Planta das estruturas romanas levantada por Estácio da Veiga em 1878. De salientar a existência de balneário.

Fig. 3 – Levantamento topográfico da jazida no decurso das campanhas arqueológicas da iniciativa do Museu Nacional de Arqueologia sob a direcção de Francisco Alves, nos anos 80 do século XX. Assinala-se a vermelho a frente erosiva marinha responsável pela continuada destruição do sítio arqueológico. Seg. Alves, 1997.

Fig. 4 – Área do balneário intervencionada na década de 80. Seg. Alves, 1997.

Fig. 5 – Aspecto do balneário. Seg. Gomes e Tavares da Silva, 1987.

Fig. 6A – Conjuntos de cetariae, pertencentes a distintas oficinas de preparados piscícolas. Seg. Alves, 1997.

Fig. 6B – Agulha de coser e reparar redes e anzóis destinados provavelmente à pesca do atum, em bronze. Adaptado de Ricardo Soares (http://vila-do-bispo-arqueologica.blogspot.pt/2014/03/espolio-arqueologi...).

Fig. 6C – Fragmentos de cerâmica cinzenta estampilhada tardia (séc. IV d.C). Seg. Ricardo Soares (http://vila-do-bispo-arqueologica.blogspot.pt/2014/03/espolio-arqueologi...).

Fig. 6D – Fragmento de estuque com pintura a fresco, da 2.ª metade do séc. IV d.C., com figuração de personagem masculina.

Soares (http://vila-do-bispo-arqueologica.blogspot.pt/2014/03/espolio-arqueologi...).

Fig. 7 – Mosaico romano da Boca do Rio. Seg. Gomes e Tavares da Silva, 1987.

Fig. 8 – Estatueta em bronze de Hera, com a cornucópia da abundância. Seg. Gomes e Tavares da Silva, 1987.

Fig. 9 – Contextualização da Boca do Rio na economia romana do Algarve litoral. Seg. Viegas, 2011.

Fig. 10 – Contextualização da Boca do Rio na provável divisão administrativa do Algarve romano. No cenário proposto, a Boca do Rio ficaria na área de influência da civitas de Lacobriga. Adaptado de Mantas, 1997.