Proposta de Estrutura Museal Polinucleada para Sines

(Adaptação de texto publicado em Musa. Museus, Arqueologia & Outros Patrimónios, vol. 1, 2004, p. 67-74)

 Antónia Coelho-Soares

 

Património Disponível

O Museu, encarado como mero “gabinete de curiosidades”, muito ao gosto dos séculos XVI a XIX, onde os objectos assumem um papel passivo, desligados dos seus contextos, já não satisfaz o visitante comum. Hoje, as populações esperam encontrar nos museus objectos falantes que conservem toda uma memória colectiva, originando espaços culturais onde o visitante sinta prazer em aprender e estabeleça diálogo com aqueles. Os objectos deverão ser, sempre que possível, conservados in situ, mantidos e recuperados culturalmente nos seus locais de origem. Deste modo, pensamos que a solução museológica mais adequada à realidade sineense consistirá numa estrutura polinucleada, integrando, numa primeira fase, as seguintes unidades:

  • Núcleo arqueológico do Castelo de Sines. Trata-se de um imóvel classificado de Interesse Público pelo Decreto n.º 22 737 de 24 de Junho de 1933; representa, pela sua arquitectura e valor simbólico, o cerne do casco histórico da cidade, a mais importante referência da paisagem urbana de Sines. Deverá constituir o núcleo sede do Museu Municipal (Fig. 1); aí se instalarão as reservas, gabinetes de trabalho, o laboratório de classificação, restauro e conservação, a biblioteca, um pequeno auditório, o serviço educativo/atelier de apoio às visitas escolares; o sector expositivo será dedicado à arqueologia da área urbana de Sines, com especial destaque para as épocas romana, visigótica, medieval cristã e da expansão ultramarina; na área murada confinante com a “Casa do Governador” criar-se-á um jardim dedicado à flora da Expansão; a restante área do perímetro amuralhado será destinada a eventos culturais que envolvam a participação de numeroso público. A Ermida de Nossa Senhora das Salas (Fig. 2) mandada construir por Vasco da Gama deverá constituir um complemento ao núcleo do Castelo, com a sugestão de um percurso de ligação ao longo da frente oceânica.

  • Núcleo arqueológico do Largo João de Deus. O complexo fabril de produção de salgas e molhos de peixe, datado dos séculos I-V d.C., existente no Largo João de Deus, documenta como o aglomerado urbano da época romana se baseava principalmente na exploração dos recursos marinhos. Foram aí identificadas duas oficinas de preparados piscícolas, completamente escavadas e com elevado valor patrimonial (Fig. 3).

  • Itinerário arqueológico dos Chãos de Sines. As jazidas arqueológicas escavadas na encosta sudeste do Chãos pelo Grupo de Trabalhos de Arqueologia do Gabinete da Área de Sines sob a direção de Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, e mantidas a descoberto, vedadas e cuidadas pelo Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, cobrem uma longa diacronia da ocupação pré-histórica dessa área, do Neolítico (Palmeirinha e Monte Novo), Calcolítico (Monte Novo) e Idade do Bronze (Quitéria e Provença). Este conjunto de arqueossítios poderá vir a integrar um itinerário arqueológico provido do respectivo centro interpretativo a instalar nas casas de Monte Novo ou da Boavista (Fig. 4A e B).

  • Moinho de vento dos Chãos. Recuperação e musealização, com a criação de um percurso que apresente as diversas fases da actividade moageira (Fig. 5).

  • Núcleo de Arqueologia e Etnografia Navais - Economias do Mar. O estudo e a recuperação dos “Armazéns da Ribeira” permitirão a instalação de um núcleo museológico dedicado à actividade marítima, desde a época romana à actualidade, mantendo sempre que possível as memórias do próprio edifício, bem como a volumetria e fachadas. Trata-se de um edifício que foi um marco na vida da cidade e que importa preservar (Fig. 6).

  • Moinhos de água da Ribeira de Moinhos. Recuperação, musealização e integração em futura quinta pedagógica.

  • Forte do Revelim. Trata-se de um imóvel datado do século XVII, classificado de Interesse Público. Pretende-se que venha a ser utilizado com fins culturais, de modo a ser valorizado e colocado ao serviço da fruição do público. A sua importância patrimonial justifica plenamente que aí se instale um núcleo museológico, dedicado à arquitectura militar costeira (Fig. 7).

  • Fabrico” de cortiça. A actividade corticeira em Sines, que remonta ao século XIX, foi o resultado, por um lado, da proximidade de importante zona de montado, e, por outro, da possibilidade de se utilizar o porto de mar no escoamento dos produtos em cortiça; constituiu um polo de desenvolvimento económico muito importante, sendo na época o maior empregador da região. Os “fabricos” eram pequenas unidades de produção unifamiliares. Pretende-se a musealização de um antigo “fabrico”, contíguo à Corticeira de Sines.

Participação Popular na Fundação e Gestão do Museu

No processo de renovação museológica ocorrido nas últimas décadas, o conceito de museu evoluiu através de novas práticas e reflexões de forma a adequar-se às necessidades das comunidades. Como instituição socialmente empenhada, deverá o Museu, ligando o passado ao presente e contando com a activa participação da população no processo da sua fundação e gestão, contribuir para a formação da consciência social; desenvolver as suas actividades de modo a debater e esclarecer problemas das populações; comprometer-se na transformação da sociedade.

Tendo em vista a criação de condições propícias à participação da população na fundação e gestão do Museu Municipal de Sines, foram desenvolvidas, nesta fase inicial do projecto, as seguintes acções (Fig. 8):

1.Ciclos de visitas guiadas de âmbito regional, integrando um programa de educação patrimonial, enquanto instrumento de afirmação de cidadania, levando a comunidade a apropriar-se e a fruir de bens e valores fundamentais para a preservação sustentável do Património Cultural do Concelho de Sines, referido a uma realidade regional mais vasta e enquadrante —o Sul do país. O primeiro destes ciclos, em 2000/2001, intitulado “O Alentejo na Época Romana”, decorreu ao longo de oito meses (aos domingos) e abriu ao público interessado o acesso à directa experimentação de sítios relevantes do património arqueológico do Sul de Portugal. Sem mediações, pisando esses lugares e convivendo com os testemunhos do passado, os participantes contaram com o apoio de arqueólogos que orientaram as seguintes visitas: Miróbriga (guiada por José Carlos Quaresma); Tróia (guiada por Carlos Tavares da Silva); S. Cucufate, Beja e Pisões (guiada por Isabel Ricardo); Évora e Tourega (guiada por Panagiotis Sarantropoulos); Ilha do Pessegueiro (visita de barco a partir de Sines guiada por Carlos Tavares da Silva).

Um segundo ciclo foi dedicado ao Megalitismo (2001/2002), cujos testemunhos materiais representam, pelo seu carácter histórico e monumental, um dos ex-libris da Arqueologia portuguesa. Encontra-se representado em Sines pelo recinto megalítico dos Chãos e ainda pela memória do monumento megalítico da Praia de S. Torpes. Este conjunto de visitas teve como orientador o arqueólogo Carlos Tavares da Silva e o apoio do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS). Integraram o ciclo de visitas os seguintes arqueossítios: tholos e gruta do Escoural, cromeleque dos Almendres e Anta Grande do Zambujeiro (Montemor-Évora); Anta 2 do Olival da Pega, cromeleque do Xarez, menir de Abelhoa e menir do Outeiro (Monsaraz); menires e cromeleques do promontório de Sagres; necrópole de tholoi e povoado de Alcalar (Portimão), presentemente dotados de centro de interpretação.

2.Visitas de estudo ao património arqueológico concelhio. Têm-serealizado numerosas visitas de estudo, promovidas com a colaboração de estabelecimentos de ensino do concelho a locais com interesse arqueológico, com pertinência para os programas educativos das escolas. As mesmas podem ser acompanhadas de materiais didácticos, como textos, fichas e vídeos. Assim, destacam-se as oficinas de produção de preparados piscícolas da época romana do Largo João de Deus (estas oficinas documentam a importância urbano que aí existiu há quase 2000 anos); as estações arqueológicas dos Chãos de Sines: Palmeirinha (povoado do neolítico com lareiras estruturadas), Monte Novo (recinto megalítico e níveis com ocupação do Calcolítico) e Quitéria (necrópole da Idade do Bronze); e o complexo arqueológico da Herdade do Pessegueiro (povoado e necrópoles das Idades do Bronze e do Ferro).

3.Visitas de estudo ao património histórico-etnográfico concelhio. No que se refere ao património com interesse histórico-etnográfico, são de destacar as seguintes visitas guiadas: à antiga estação da CP (edifício que contém no exterior um conjunto de painéis de azulejos referentes a alguns aspectos da história de Sines; recorde-se que o comboio chegou a Sines a 14 de Setembro de 1936) (Fig. 9); à Corticeira de Sines e ainda à Docapesca.

4.Exposições temporárias e/ou itinerantes:

Mulheres”, fotografia de Eduardo Gageiro, na Capela da Misericórdia de Sines, com a colaboração do MAEDS. Inauguração acompanhada de recital de poesia pelo Teatro do Mar, em 2000.

Mulheres”, pintura de Acácio Malhador, na Capela da Misericórdia de Sines. Dia Internacional da Mulher/2001.

Patrimónios”, pintura de Luciano Costa, focando aspectos do património paisagístico e edificado do litoral alentejano, 2001.

Os Romanos no Sado”, exposição documental do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal/Museu Municipal de Torres Vedras. Apresentada (no âmbito das comemorações do “Dia Internacional dos Museus”/2002) na Escola Secundária Vasco da Gama e animada através de um atelier sobre material anfórico e de palestra sobre a romanização.

Contra o Desperdício: Reduzir, Reutilizar, Reciclar”, exposição (e CD-Rom) que circulou em Sines/2003, na Escola Secundária Poeta Al Berto, ATL e Escola B 2, 3 Vasco da Gama, produzida pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS); procurou, de forma sintética, mostrar a evolução das relações das sociedades humanas com o meio biofísico, no decurso do processo histórico; integrou um conjunto de trabalhos escultóricos realizados a partir de subprodutos, da autoria do artista popular José Felisbelo; revelou ainda experiências de reciclagem bem sucedidas como as do Moinho da Carvalha Gorda, propondo a adopção de comportamentos globalmente conservacionistas, necessários à redescoberta de um novo equilíbrio entre as sociedades humanas e os recursos do nosso planeta. A mesma exposição foi complementada por meios de informação audiovisuais, e enriquecida por trabalhos elaborados pelos alunos das escolas onde esteve patente.

A História do Mundo Através da Banda Desenhada”, com pranchas de banda desenhada representativas do modo como a história do mundo tem sido apropriada pela nona arte e através dela ensinada aos mais e menos novos. Além da visita à exposição e da projecção de vídeos sobre a história do Homem desde a Pré-história à actualidade, as crianças que se dirigiram à alcáçova do Castelo tiveram oportunidade de desenhar e pintar em telas disponíveis para esse efeito. Iniciativa que decorreu em 2003 e contou com a colaboração do Museu Rainha D. Leonor, de Beja.

O Chão das Musas - O Mosaico no Mundo Romano”, apresentada em Sines, no âmbito das comemorações do Dia do Município (2003). Conjunto de réplicas de mosaicos romanos de Ostia, Roma, Pompeia e Elvas, elaboradas pelos formandos do Curso de Restauro, Valorização do Património Arqueológico e Recuperação de Mosaicos Romanos. Colaboração do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas (Sintra). Como complemento da exposição, foi apresentado um CD-Rom, mostrando mosaicos de todo o mundo romano integrados nos respectivos contextos, sobretudo na arquitectura da época.

5.Seminários e Encontros:

Eventos destinados a divulgar e actualizar a informação sobre a História de Sines. Refira-se a titulo de exemplo:

  • Seminário “Arqueologia e Evolução da Ocupação Humana no Litoral Alentejano”. Realizado em 2000 com o objectivo divulgar os resultados das investigações arqueológicas que foram efectuadas no litoral alentejano e que permitem estabelecer os traços gerais da evolução da ocupação humana que, desde o Paleolítico inferior, se processou nessa região. Contou com a participação de professores, estudantes, técnicos das autarquias e interessados na História e Património da Costa Sudoeste. Foram conferencistas os arqueólogos João L. Cardoso, Joaquina Soares, Carlos Tavares da Silva, Mário Varela Gomes e Antónia Coelho Soares.

  • III Encontro do CEDA - “Entre o Mar e a Charneca”. 2001. Apoio à organização deste evento, centrado no património natural e cultural de Sines e que contou com largas dezenas de participantes.

  • Seminário sobre o “Património Arqueológico do Sines, no âmbito das celebrações do Dia Internacional dos Museus (2002)e dirigido aos estabelecimentos de ensino da cidade. Apresentação de palestra, na Capela da Misericórdia, seguida de visitas guiadas a estações arqueológicas dos Chãos de Sines e aos estabelecimentos fabris da época romana do Largo João de Deus.

  • Conferência/debate “Mulheres na História, Mulheres sem História”. Integrou as comemorações do Dia Internacional da Mulher/2002 e foi orientado pelo arqueólogo Carlos Tavares da Silva e pelas historiadoras Ana Rodrigues Oliveira e Virgínia do Rosário Baptista.

  • Debate “Sines Solidária com o Museu de Bagdad”. Dia Internacional dos Museus/2003, no âmbito da campanha iniciada em 1997, pelo ICOM, contra o tráfico de Bens Culturais; o debate incidiu particularmente sobre o saque do Museu de Bagdad, na sequência da invasão do Iraque pelos EUA. Foi discutido e assinado o manifesto da Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional de Museus, repudiando a destruição e o saque do Museu de Bagdad. Esta iniciativa teve lugar na Escola Secundária Poeta Al Berto. Para os mais pequenos, foi instalado um estúdio de pintura na alcáçova do Castelo de Sines e feita uma apresentação da história do monumento.

  • Eventos de História Local (...) da iniciativa do Centro Cultural Emmérico Nunes.

Investigação do Subsolo Arqueológico de Sines

Um museu tem de ser também um local onde se produz informação, neste caso concreto sobre a arqueologia e a história de Sines. Deste modo, o museu deverá fomentar a investigação sobre esses domínios, designadamente através de escavações arqueológicas na área urbana, sobretudo em situações de emergência-salvamento.

A primeira dessas intervenções teve lugar na Rua Ramos da Costa. O local era já conhecido por aflorarem, no talude da estrada que dá acesso à praia, tanques de salga da época romana. As escavações arqueológicas de emergência foram motivadas por projecto de construção de um edifício para esse local (Fig. 10).

Numa área de 196 m2, situada entre a Rua Ramos da Costa e a Travessa de São Sebastião, e limitada a sul pela Barroca, foram identificadas três novas oficinas romanas de produção de preparados piscícolas. Estas oficinas eram constituídas, à semelhança das anteriormente escavadas no Largo João de Deus (junto às muralhas do Castelo), por tanques (onde o peixe ficava durante algum tempo a macerar em sal), que se organizavam em torno de um pátio.

Perante o estado de destruição das estruturas arqueológicas postas a descoberto no lote da Rua Ramos da Costa agora intervencionado, não se optou pela sua musealização. Essa destruição resultou sobretudo da desmontagem dos muros da época romana, em períodos posteriores, tendo em vista a reutilização dos blocos pétreos em novas construções.

Verificou-se que as referidas unidades fabris foram implantadas em socalcos que, por hipótese, se escalonavam ao longo da encosta, a partir da praia. Assim, é possível que parte da Barroca estivesse ocupada, durante a época romana, por fábricas de produção de salgas de peixe. A intensa erosão que, durante os últimos 2000 anos, actuou sobre esta zona, bem como factores de natureza antrópica, como a construção da via que liga o Largo João de Deus à praia, teriam sido responsáveis pelo desaparecimento de grande parte da jazida arqueológica.

Outros trabalhos de intervenção no subsolo urbano têm sido objecto de acompanhamento arqueológico.

No mesmo espírito de salvaguarda do património arqueológico do concelho de Sines, elaborou-se uma carta arqueológica que deve funcionar como instrumento básico no ordenamento do território.

Pese embora os escassos meios humanos e financeiros colocados ao dispor deste projecto, a ideia de um museu participado pela Comunidade e integrador do património cultural e natural de Sines e das dinâmicas sociais locais foi semeada. Esperemos que frutifique.

 

Fig. 1 - Castelo de Sines. Vista da casa do governador onde actualmente se situa o Museu Municipal. Foto Rosa Nunes.

Fig. 2 – Fachada principal de Ermida da Nª Sª das Salas. Foto Arquivo CMS.

Fig. 3A - Visita com alunos da Escola Básica 1 nº 1 à oficina de preparados piscícolas da época romana do Largo João de Deus.

Fig. 3B - Conjunto fabril de produção de preparados piscícolas da época romana do Largo João de Deus.

Fig. 4A – Chãos Sines. Pintura de Luciano Costa. Acrílico sobre tela, 38 x 46cm.

Fig. 4B – Monte da Boavista - Chãos de Sines (acrílico sobre tela de Luciano Costa, 20 x 40 cm), onde poderá vir a ser instalado o centro interpretativo do itinerário arqueológico dos Chãos.

Fig. 5 – Moinho dos Chãos – Sines. Pintura de Luciano Costa. Acrílico sobre tela, 24 x 33cm.

Fig. 6 – A Ribeira – Sines. Pintura de Luciano Costa. Acrílico sobre tela, 24 x 33cm.

Fig. 7 – Forte do Revelim – Sines. Pintura de Luciano Costa. Acrílico sobre tela, 46 x 55cm.

Fig. 8 – III Encontro do CEDA: 1 e 2 sessões em sala (auditório da Câmara Municipal de Sines); 3 a 9 visitas guiadas: 3 estabelecimento da Época Romana do Largo João de Deus; 4 necrópole de Idade de Bronze da Herdade do Pessegueiro; 5 estação arqueológica da Ilha do Pessegueiro; 6 capela da N.ª Sr.ª das Salas; 7 Forte do Revelim; 8 Forte do Pessegueiro.

Fig. 9A – Antiga estação da CP em Sines.

Fig. 9B – Antiga estação da CP em Sines: balança e bilheteira.

Fig. 10 – Oficina de preparados piscícolas da época romana, recentemente posta a descoberto na Rua Ramos da Costa (2002).