Lenda de S. Torpes

A lenda de S. Torpes integra um amplo conjunto de lendas respeitantes aos santos mártires dos alvores do Cristianismo, os quais legitimaram o poder político “dos bispados”, difuso e fragmentário, que paulatinamente articulou a vida social após e﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ Império romano do o00000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000 o colapso do Império romano do Ocidente. Ocorre então uma acentuada “ruralização” do povoamento, o mesmo é dizer desurbanização, que terá facilitado a constituição de comunidades tendencialmente autónomas e autossuficientes na ausência, sublinhe-se, de um poder político forte e centralizado. Estas formas intermédias de organização social, por hipótese tendencialmente acéfalas ou “anarquistas”, não têm merecido a necessária atenção na agenda da investigação arqueológica. Pelo contrário, esse período de profunda crise e transformação social, intercalado entre o fim do período romano e as invasões islâmicas, ou seja, entre os séculos V e VIII, irá deixar marcas indeléveis no imaginário popular.

A lenda

No ano 67 d. C., Torpes, um oficial ao serviço do imperador Nero, foi decapitado em Pisa e atirado ao rio Arno, por ter manifestado a sua adesão ao Cristianismo (Soledade, 1973). Os despojos do santo vieram dar à costa junto da foz da Ribeira da Junqueira, em um troço litoral a sul de Sines (herdade da Provença/ribeira da Junqueira/baía de S. Torpes) arenoso e baixo, de fortíssima rebentação (Figs. 1-3), onde barcos romanos naufragaram (Fig. 4).Note-se que a mesma lenda é reclamada pra o SE francês (S. Tropez, rivière de la Junquière, région de Provence), de onde provavelmente terá migrado para a costa atlântica, associada à toponímia do litoral francês.

Celerina (Sta Catarina), esposa de Lúcio Venâncio, governador da Tarraconense, e posteriormente radicada em Évora e santificada, teria sido visitada por um anjo que lhe atribuiu a missão de receber e sepultar condignamente os despojos mortais de S. Torpes. Deslocou-se então a Sines e na baía que fica a sul da povoação encontrou varada na praia a barca com o santo velado por um cão e um galo (Soledade, 1973, p. 178). Nesse local, onde os restos de S. Torpes deram à costa, teria, segundo a lenda, mandado construir o primeiro templo cristão da Europa.

O registo arqueológico

Não sabemos se a lenda antecedeu os achados arqueológicos da foz da Ribeira de S. Torpes e constituiu o contexto ideológico para a sua explicação ou se surgiu após a referida descoberta, servindo igualmente para justificar a presença de restos humanos nesse local.

Por iniciativa do arcebispo de Évora, D. Teotónio de Bragança, em Junho de 1591, foi registado o aparecimento de ossadas humanas e espólio associado, atribuído então à sepultura de S. Torpes. Escreveu-se no inventário “ Eu Pedro Lopes, notário apostólico [...] faço fé que o que nesta caixa está é o seguinte: a ossada que se tirou da sepultura na foz da Junqueira termo desta vila de Sines; a terra que se tirou dos ditos ossos ao tempo que se acharam; uma pomazinha quebrada de barro que se achou na dita sepultura; uma estampa de pedra preta debuxada que se achou na dita sepultura [...] está mais nesta caixa um casco de cabeça que foi achado à porta da sepultura da banda de fora; está mais uma pedra preta que se achou fora do vestígio [...] fica mais de fora outro caixão que tem a ossada dos corpos que estavam de fora do circuito, fora da sepultura, o que tudo foi tirado dela em os sete dias do mês do mês de Junho da qual tirada, e diligências que se faz sobre isto” (Vasconcelos, 1914; Soledade, 1973).

Em 1695, os ossos foram enterrados na igreja matriz, na capela de S. Frei Pedro Gonçalves, de onde viriam a desaparecer quase completamente, levados pelos crentes como relíquias do santo. Em 1746, Lis Velho apenas encontrou no local escassos ossos, uma calote craniana, um pequeno vaso cerâmico, ou seja, a pomazinha de barro inventariada em 1591 e uma placa de xisto gravada, também registada em 1591, como estampa de pedra preta debuxada (Fig. 5) . Este achado arqueológico (sepultura colectiva do Neolítico final, com cerca de 5000 anos), de que sobraram o recipiente cerâmico e o idoliforme em xisto (Tavares da Silva & Soares, 1981), foi ainda observado no sacrário da Igreja da Misericórdia de Sines, por José Leite de Vasconcelos em1914, permitindo compreender a lenda e a sua função explicativa na ordenação de acontecimentos anómalos para o conhecimento sobre o Passado humano, durante o Renascimento.

A veneração de S. Torpes em Sines encontra-se ainda documentada por monumento epigráfico (Fig. 6), instalado no local onde supostamente teria existido a sepultura do santo. A paisagem ancestral que subsistiu até à década de 70 do século passado foi intensamente industrializada de acordo com o projecto iniciado pelo Gabinete da Área de Sines, mas no imaginário popular o carácter mágico do lugar persiste graças à preservação da cultura imaterial e ao mesmo mar espraiado por extenso raso de maré.

Bibliografia principal:

SOLEDADE, A. (1973) – Sines. Terra de Vasco da Gama. Setúbal: Junta Distrital de Setúbal.

TAVARES DA SILVA, C. & SOARES, J. (1981) – Pré-história da Área de Sines. Lisboa: Gabinete da Área de Sines.

VASCONCELOS, J. Leite de (1914) – Excursão arqueológica à Extremadura Transtagana. O Archeologo Português, 19, p. 300-323.

Joaquina Soares

Fig. 1 – Entardecer na Praia de S. Torpes (18, 44H do dia 6 de Setembro). Muito ao longe, navios que chegam ou partem do porto de águas profundas de Sines. Trabalho fotográfico de Rosa Nunes, intitulado “ Lenda de S. Torpes”, 2007.

Fig. 2 – Entardecer na Praia de S. Torpes (18, 44H do dia 6 de Setembro). Muito ao longe, navios que chegam ou partem do porto de águas profundas de Sines. Trabalho fotográfico de Rosa Nunes, intitulado “ Lenda de S. Torpes”, 2007.

Fig. 3 – Entardecer na Praia de S. Torpes (18, 44H do dia 6 de Setembro). Muito ao longe, navios que chegam ou partem do porto de águas profundas de Sines. Trabalho fotográfico de Rosa Nunes, intitulado “ Lenda de S. Torpes”, 2007.

Fig. 4 – Cepo de âncora romana, em chumbo, recolhida na baía de S. Torpes. Colecção do Museu Municipal de Sines. Foto de arquivo da Câmara Municipal de Sines.

Fig. 5 – Placa de xisto gravada atribuível ao Neolítico final/Calcolítico inicial, proveniente de sepultura pré-histórica da foz da Ribª da Junqueira, a que se colou, no século XVI, a lenda de S. Torpes. A - desenho de Lis Velho, 1746 (apud Tavares da Silva & Soares, 1981); B- anverso a partir do desenho de Lis Velho; C- reverso a partir do desenho de Lis Velho.

Fig. 6 – Monumento epigráfico do século XVIII (1783) que segundo a lenda assinala a sepultura de S. Torpes. Foto de Arquivo MAEDS.