Algumas das personalidades que integram a memória colectiva

1. Cláudia de Campos (1859-1916)


Nascida a 28 de janeiro de 1859, filha de Maria Augusta Palma de Campos e de Francisco António de Campos, teve por padrinho de batismo seu avô, Guarda-Mor de Saúde do Porto de Sines, Jacinto José Palma.

Casou em 1875 com Joaquim D’Ornelas e Matos. Ela com apenas 16 anos e ele 19. O Barão de S. Pedro, José Ribeiro da Cunha, foi testemunha de casamento.

Em jovem frequentou o Colégio de Mrs. Kutle, na Rua do Alecrim, em Lisboa. Privou com a mais alta sociedade lisboeta, frequentando a Academia de Ciências de Lisboa e os Salões Literários do Casino.

"Cláudia de Campos era uma mulher feliz, alegre e linda", afirma Maria Amália Vaz de Carvalho no seu diário.

Foi uma intelectual inovadora, ensaísta da condição da mulher. Escreveu um "Ensaio de Psicologia Feminina", onde analisa  Charlotte Brontë, Condessa de Lafayette, Baronesa de Staël, Josephine de Neuville,  Rainha da Roménia. Estudou também Edward Thomas, Gibson, Masefield e outros. Interessou-se pelos autores franceses, alemães e ingleses, tendo deixado um manuscrito intitulado "Shelley", sobre o poeta Percey B. Shelley, amigo de Lord Byron.

Cláudia de Campos estreou-se em termos literários com um volume de pequenos contos intitulado "Rindo...". Seguiram-se "O Último Amor", "Mulheres", "A Esfinge", "A Baronesa de Staël", "O Duque de Palmela" e o polémico "Ele". A polémica de "Ele" fundamenta-se no facto de o livro tratar locais e personagens que não eram mais dos que os sítios e as pessoas com as quais a autora conviveu em Sines, ainda que lhes tenha atribuído diferentes nomes.

Morreu com 56 anos, a 30 de dezembro de 1916, na Av. Duque de Loulé, 81 (freguesia de Camões, em Lisboa), vítima de colapso cardíaco.


A recepção da obra no seu tempo

Brilhante escriptora! Gentil mulher! Eis, em breves palavras, resumida a individualidade soberana e captivante da senhora, cujo retrato é apresentado, pela vez primeira, ao publico selecto, - principalmente feminino e aristocrata, - que a admira e lê!”

D. Claudia de Campos, nascida e creada no seio de uma familia distincta e opulenta, recebeu de seu pae, - o rico industrial Francisco Antonio de Campos, que deixou de si honrada e saudosa memoria, - a mais priveligiada e alta cultura intellectual, e a mais perfeita e completa educação artistica. Ampliando e desenvolvendo, uma e outra, pelo estudo incessante dos monumentos litterarioscom que as principaes linguas europêas se glorificam e pela applicação consciente e reflectida das suas excellentes faculdades criticas, reuniu em si os attributos da maxima competencia para o exercicio da carreira litteraria em que tão brilhantemente se estreiou.”

O seu livro Rindo... fica sendo um modêlo na arte de contar com subtileza, elegancia e propriedade. No momento em que o nosso Almanach é distribuido, deve estar a apparecer nas livrarias o seu formoso romance Ultimo Amor, analyse psychologica e profunda de uma alma feminina, a quem um desengano mortal lançou nos abysmos do descrer, e que a seu turno flagella, inconsciente quasi, urna outra alma, pura e candida, que se lhe votou. E a delicada e infatigavel escriptora tem já preparados outros volumes, dos quaes o primeiro a publicar-se, “Mulheres”, ha de ser, para todos, uma nova revelação de um grande talento, que se affirma e impõe.”

Nova, formosa, intelligente, dotada das mais encantadoras graças femininas, e de um talento que paira nas supremas regiões do espirito, independente pelos seus meios de fortuna, - o que lhe permitte trabalhar apenas pelo amor e pelo culto respeitoso da arte que a enlevou, - D. Claudia de Campos partilha entre essas distinctas occupações do entendimento, e a missão de educar uma filha gentilíssima - da qual parece irmã, - os cuidados da sua vida tão completa e tão util.”

Saudamos, pois, a nova estrella que alvorece, e a mulher que tão bem sabe comprehender a sua alta missão.” (Almanach Ilustrado de 1894. Edição de Francisco Pastor. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1893, p. 11.)

"Os aplausos com que foi recebido o "Último Amor", não hão de acurtar nesta obra, «A Esfinge», de índole diversa, menos a sabor do geral dos leitores, porém onde, a meu ver, se assinala vigorosamente o talento incontestável da escritora, que é, já hoje, mais um primor no brasão da literatura feminina do nosso país, onde há florões encantadores. Familiarizada com a língua inglesa, desde a infância, conhece a fundo os poetas e romancistas nos quais, às vezes, a par das tempestades de génio, aparece a ironia mordente a acerba, que se não excede, se porventura se iguala.” - Bulhão Pato, no Almanach Bertrand (1900).

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2. Emmerico Nunes (1888-1968) 

 

Emmerico Hartwich Nunes nasceu em Lisboa em 6 de janeiro de 1888, filho de Silvestre Jacinto Nunes e Maria Ferdinanda von Moers Hartwich Nunes (bávara de Regensburg, na Alemanha). Com apenas 10 anos editou um semanário humorístico - "A Risota", com prosa e desenhos da sua autoria. Entusiasmou-se com a "Paródia" de Rafael Bordalo Pinheiro e tornou-se admirador de Leal da Câmara, ilustrador da "Marselheza" e da "Corja". Editou um semanário, "Folhas Volantes".

Depois de acabar o curso comercial no Liceu Politécnico, frequentou a Escola Comercial Peixoto, por desejo do pai, mas acabou por optar pela Escola de Belas-Artes de Lisboa, tendo como mestres Condeixa e Alberto Nunes. Por conselho de Malhoa, Silvestre Nunes decidiu mandar o filho para Paris. Em 1906, Emmerico Nunes seguiu para Paris, com uma carta de apresentação de Jorge Colaço dirigida a Ferdinand Cormon, que fora seu professor nas Beaux Arts.

Em 1910, viajou para Inglaterra, Holanda e Bélgica, na companhia de Eduardo Viana, Francisco Smith e Manuel Bentes. Participou depois numa exposição de caricaturas na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa. Em 1911, Emmerico foi para Munique. Estudou na Kunstakademie e frequentou o ateliê de Heimann. Dirige-se à editora do Meggendorfer Blatter com o intuito de lhe vender um álbum para crianças desenhado em Paris. Entrou como colaborador efetivo do jornal, com exclusividade até 1916.

Participoua na Exposição Livre, em Lisboa, que reuniu um grupo de artistas vindos de Paris: Manuel Bentes, Emmerico Nunes, Eduardo Viana, Alberto Cardoso, Francisco Smith, Domingos Rebelo, Álvares Cabral. Criou em 1915 "Quim e Manecas" no Século Cómico, um suplemento humorístico do jornal O Século.

Continuou esta série até 1953, oito anos antes da sua morte.
Emmerico Nunes partiu para Zurique em Outubro e manteve colaboração com um jornal alemão durante o tempo da guerra. Em Lisboa fez uma exposição sob o título "Arte e Humor". Em Zurique, trabalhou para um ateliê de artes gráficas  e expôs diversas vezes paisagens e caricaturas na Kunsthaus. Regressou ao país em 1918 e, no ano seguinte, expôs com os Humoristas Portugueses em Lisboa.

Sines foi o cenário do seu casamento, em 1920, com Clotilde Edwards Pidwell.

A Editora Schreiber insistiu no seu regresso a Munique com o pretexto de que Alemanha tinha voltado à normalidade, mas Emmerico Nunes hesitou. Foi a Madrid em março para participar na exposição dos humoristas espanhóis. Os seus trabalhos a óleo foram reproduzidos em "La Esfera", assim como outros desenhos a preto e branco publicados em "Nuevo Mundo". Quando retornou a Lisboa não encontrou trabalho, vive apenas do produto das suas produções para o estrangeiro, designadamente para Munique. Em 1921, estando Emmerico Nunes na Alemanha, nasceu a sua primeira filha e o artista voltou a Portugal. Mas continuou a trabalhar para o Meggendorfer Blatter. Praticamente nada recebia pelos seus trabalhos, devido à inflação que fastigava a Alemanha. Acabou por aceitar um lugar como dactilógrafo numa casa comercial. Em Lisboa, surgiram "O Diário de Lisboa", o "ABC A RIR" (Semanário Humorístico) e o ABC-ZINHO (jornal infantil dirigido por Cottineli Telmo). Emmerico colaborou com os três, ainda que continuasse a executar trabalhos publicitários para o ateliê Hauser, em Berna, na Suíça.

Em 1924, Emmerico encontrava-se em Munique. O movimento nacional-socialista começava a alastrar e o artista decidiu que jamais se conseguiria estabelecer na Alemanha sob tal regime e regressou definitivamente a Portugal. Envia, no entanto, pontualmente, desenhos para a editora J. F. Schreiber de Munique e colabora ao mesmo tempo com "O Domingo Ilustrado" e "Espectro", que tem uma duração efémera.

Em 1926, é instituída em Portugal a ditadura militar e começa a censura à imprensa. Iniciam-se as publicações de "Ilustração", "Magazine Bertrand" com as quais o artista começa a colaborar. Aceita um lugar de desenhador na secção de publicidade da Vacuum e participa no Salão dos Humoristas (Salão Silva Porto), no Porto e no II Salão de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa.

 Em 1929, ilustrou os livros da coleção "Biblioteca dos Pequeninos", editada pela Empresa Nacional de Publicidade. A editora J.F. Schreiber de Munique adquiriu o "Fliegende Blatter" e Emmerico Nunes começou a sua colaboração.

Entre 1930 e 1931, o artista adoeceu. Foi despedido da Vacuum e sobreviveu vendendo retratos a óleo.

Acabou por arranjar emprego na Secção de Publicidade da Companhia Industrial de Portugal e Colónias. Colaborou com o "Zuricher Ilustrierte Zeitung" de Zurique e participou nos salões anuais da Sociedade de Belas Artes.

Em 1935 viveu em Haia, onde colaborou no "Haagscher Courant" durante dois meses e voltou de novo a entrar ao serviço da "Vacuum". De manhã trabalhava na “Portugal e Colónias”, à tarde na “Vacuum” e à noite desenhava para "O Senhor Doutor". Restavam-lhe os domingos para pintar.

Em 1937, Emmerico Nunes integrou a equipa de decoração do pavilhão português na Exposição Universal de França.

Em 1939 colaborou também para o pavilhão nacional na Feira Internacional de Nova Iorque. Em 1940, participou na Exposição do Mundo Português.

 Em 1951, Emmerico Nunes foi professor de desenho dos filhos do Conde de Paris. A Agência Geral do Ultramar encarregou-o da realização do Pavilhão do Ultramar para a Feira Popular de Lisboa. No mesmo ano, organizou a exposição de Arte Sacra Missionária em Lisboa (no claustro do Mosteiro dos Jerónimos) e Pio XII agraciou-o com a comenda da Ordem de S. Silvestre. Em 1952, executou trabalhos de restauro nas Oficinas do Museu Nacional de Arte Antiga.

Expôs na 1.ª Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (criada em 1956) com o óleo "Brooklyn".

Emmerico Nunes foi operado em 1960 e ficou com a saúde muito abalada. Ainda executou um painel para a Igreja Matriz de Sines e pintou vários retratos e paisagens.

A 18 de janeiro de 1968, Emmerico Hartwich Nunes morre em Sines

 

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3. Al Berto (1948-1997)

Sines foi casa de Al Berto, um dos maiores poetas e uma das mais influentes figuras da literatura portuguesa da segunda metade do século XX.

Alberto Raposo Pidwell Tavares nasceu em Coimbra no dia 11 de janeiro de 1948, mas, apenas com um ano, veio para Sines, onde cresceu, no seio de uma família com raízes inglesas.

São a escultura e a pintura que primeiro o atrairam. Frequentou a Escola António Arroio e a Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. Aos 19 anos, inscreveu-se no curso de pintura monumental da École Nationale Supérieure d'Architecture et des Arts Visuels - La Cambre, em Bruxelas, para onde foi viver, recusando-se a participar na Guerra Colonial, promovida pelo Estado Novo.

Em apenas alguns anos na Bélgica, a sua criatividade começou a transitar das artes plásticas para a literatura. Embora a pintura continuasse a interessá-lo (escreverá sobre artes plásticas em diferentes ocasiões), decidiu abandoná-la, como artista, em 1971, durante uma estada na cidade de Barcelona.

Em novembro de 1975, voltou a Sines, onde escreveu o seu primeiro livro inteiramente em português, “À procura do vento num jardim d'agosto”, publicado em 1977. A década e meia seguinte foram passadas entre Sines e Lisboa, repartindo o tempo dedicado à poesia com atividades como as de editor, de livreiro e de animador cultural. Foi nestas funções que trabalhou na Câmara Municipal de Sines e dirigiu o Centro Cultural Emmerico Nunes. Sobre a Sines industrial que encontrou no seu regresso da Bélgica, tão diferente da que abandonara em 1967, publicou, em 1980, “Mar-de-leva / Sete textos dedicados à vila de Sines”.

A consagração como grande poeta português surgiu com o lançamento da antologia da sua poesia, “O Medo”, que lhe valeu o Prémio Pen Clube em 1987. “Horto de Incêndio” (Assírio & Alvim), foi o seu último livro, editado em vida, no ano de 1997. Morreu, de linfoma, no dia 13 de junho desse mesmo ano.

A memória e obra de Al Berto têm sido evocadas e reinventadas com grande frequência. Os alunos da Escola Secundária de Sines escolheram-no como patrono. A sua produção criativa saiu em novas edições, inclusivamente a visual, com a publicação pela Assírio & Alvim do seu livro de desenhos “Project 69”.

Exposições de homenagem (como as que o Centro Cultural Emmerico Nunes tem promovido ao longo dos anos), projetos de artes de palco (como os criados pelo Teatro do Mar), e até agrupamentos musicais, como Wordsong, enriqueceram a obra de Al Berto de leituras.

Desde 2006, com o título “Eis-me acordado muito tempo antes de mim”, a biografia escrita pela romena Golgona Anghel permite-nos conhecer melhor o que foi o seu percurso artístico e a sua vida.

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Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

Al Berto, “O Medo”

Os Amigos

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto, in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro'

Pernoitas em Mim

pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto, in 'Rumor dos Fogos'

Visita-me Enquanto não Envelheço

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto, in 'Salsugem'