Ilha do Pessegueiro

Freguesia/Concelho: Porto Covo (Sines)

Localização: 37°49'58.77"N; 8°47'50.82"W (C.M.P. 1:25000, Folha 535)

Cronologia:Idade do Ferro e Romano

A Ilha do Pessegueiro situa-se no litoral alentejano, a cerca de 15 Km para sul de Sines. Com 340 m de comprimento e 325 de largura, dista apenas 250 m da actual linha de costa e constitui gigantesco quebra-mar. Conserva numerosos testemunhos arqueológicos que reflectem as vicissitudes da navegação ao longo da costa meridional da Lusitânia, entre os séculos IV-III antes de Cristo e o século V depois de Cristo. Também o malogrado projecto de criação de um ponto artificial concebido no findar do século XVI deixou as suas marcas na ilha.

O canal que a separa do continente representou um dos principais factores de ocupação humana, visto oferecer excelentes condições naturais de fundeadoro.

A localização, a meia distância entre o Cabo de São Vicente e o estuário do Sado, no contexto de um litoral com poucos abrigos, conferiu ao estabelecimento aí fundado, primeiro na Idade do Ferro e, mais tarde, na Época Romana, um carácter marcadamente portuário, de apoio à navegação costeira e com características de entreposto comercial.

Em documentos do séc. XVIII, surge com a denominação toponímica de Pixigueyro. Topónimo que poderá ter derivado do latim piscarius, o adjectivo derivado de piscis (peixe), fazendo, assim, jus à riqueza piscícolas da área.

No decurso das ocupações humanas da ilha, diferentes recursos foram sendo explorados, em função da evolução económica do Sudoeste Peninsular. Contudo, a dependência da ilha face ao continente e o seu carácter sazonal mantiveram-se constantes.

A investigação arqueológica aí realizada a partir de 1980 pelo Grupo de Trabalhos de Arqueologia do Gabinete da Área de Sines e prosseguida pela Unidade de Arqueologia da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano, em colaboração com o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, permitiu estabelecer, no processo da sua ocupação humana, os seguintes horizontes cronológicos: fase I – ocupação da Idade do Ferro, fase II – ocupação da época romana, comportando as subfases IIA (fundação de entreposto comercial na segunda metade do século I), IIB (diversificação económica – actividade comercial e produção de salgas, no século II) e IIC (especialização na produção de salgas de peixe, nos sécs. III e IV).

Pouco se sabe acerca do estabelecimentos da Idade do Ferro, pois a ocupação da época romana destruiu todas as estruturas anteriores. Os materiais exumados pertencentes àquele período correspondem, de um modo geral, aos séculos III a I a.C.. Acusam um carácter cultural marcadamente mediterrâneo e podem testemunhar o apoio que, já nessa época, a ilha poderia dar ao comércio marítimo na costa ocidental da Península Ibérica, comércio documentado, aliás, através de provas directas (cepo de âncora encontrado no mar das Berlengas, cujo núcleo de madeira foi datado por 14C do séc. V-IV a.C.).

Após um período de abandono, a ilha do Pessegueiro é novamente ocupada, a partir de meados do século I d.C.. Durante quase dois séculos (fases IIA e IIB) ela irá comportar-se essencialmente como um entreposto no comércio romano do sul da Lusitânia. O espaço habitado é então organizado em socalcos cortados na rocha (arenito dunar) sobre os quais se erguem edifícios de planta rectangular, com paredes de taipa assentes sobre base formada por blocos de arenito dunar ligados por argila. A cobertura seria constituída por materiais de origem vegetal. O pavimento era o próprio substrato rochoso cortado e regularizado. Algumas destas construções, providas de lareiras, foram certamente utilizadas como habitações; outras, pelas suas grandes dimensões e modo como se organizavam espacialmente podem ser interpretadas como armazéns. Até ao final do século I, momento em que muitos destes edifícios são abandonados ou reconstruídos de acordo com novos modelos, a ilha recebe salgas e molhos de peixe, em ânforas provenientes da Bética e talvez também do estuário do Sado; azeite da Bética e vinho do sul da Gália. Com estes produtos, chegam cerâmicas finas: sigillata do sul da Gália ou de fabrico hispânico, esta última produzida sobretudo nas olarias de Tritium Magallum, no Ebro. Ao mesmo tempo, a ilha escoa produtos mineiros, nomeadamente da Serra do Cercal.

Na passagem do século I para o seguinte inicia-se uma segunda fase construtiva e, de certo modo, económica (fase IIB). O espaço anteriormente ocupado é reorganizado, embora se mantenha a orientação dos antigos edifícios e a organização em socalcos cortados na rocha. Alguns dos compartimentos da fase IIA são subdivididos; a taipa das paredes é substituída por alvenaria; a cobertura passa a ser constituída por telhas. Funcionalmente, as novas construções repartem-se por habitações, oficinas (forja, p. ex.), armazéns. Foi também posto a descoberto um forno de cozer pão. Ocorrem as primeiras manifestações relacionadas com a actividade industrial de produção de salgas de peixe, as quais seriam envasadas em ânforas da forma Dressel 14 provenientes das olarias do Sado/Tejo. Por conseguinte, a economia da ilha diversifica-se na fase IIB, pois a par da nascente actividade industrial, mantém-se a actividade comercial, com a chegada de produtos da Bética (azeite, sigillata de Andújar) e de origem norte-africana (sigillata clara A, cerâmica de cozinha) e com o prosseguimento da exportação de produtos mineiros.

A partir da segunda metade do século III, a vida económica muda radicalmente (Fase IIC): o entreposto comercial é abandonado e substituído por um centro exclusivamente industrial de produção de salgas de peixe. Efectivamente, durante esta fase, que se prolongará até ao fim do século IV/inícios do século V, assiste-se a acentuado declíneo nas importações. Mas, em contrapartida, funcionam, pelo menos, duas unidades de produção de preparados piscícolas e é construído um balneário. Este balneário, de pequenas dimensões, à escala da ilha, possui um vestiário, de planta rectangular, com banco corrido adossado às paredes interiores. A partir desta primeira sala tinha-se acesso, por um lado, a uma tina semicircular, de água fria, que funcionava como frigidarium, e por outro aos banhos quentes, constituídos por uma ampla sala rectangular servida por tina em abside; o hipocaustum, sobre o qual assentava esta parte do balneário, conserva-se razoavelmente; a fornalha que se ligava ao lado este do hipocaustum foi consideravelmente afectada pela abrasão marinha.

Após longo abandono, o projecto de criação de um porto artificial no canal situado entre a ilha e o continente, através da construção de um molhe que ligaria a extremidade norte da ilha ao Penedo do Cavalo, viria a desencadear a realização de importantes obras no local, entre 1590 e 1603, ano em que os trabalhos foram definitivamente suspensos. Desse mal sucedido empreendimento restam uma fortaleza em terra, um fortim na ilha que não chegou a ser concluído e as pedreiras, em terra, para a construção do forte, e na extremidade setentrional da ilha, para o abastecimento das obras de construção do fortim e, sobretudo, do molhe de encerramento do porto artificial. A amplitude da empresa, a deficiente avaliação técnica do projecto e a conjuntura de guerra com os ingleses que originava frequentes ataques de corsários, votam-no ao fracasso. O sonho de criação de um porto seguro no Alentejo litoral, utópico no dealbar do séc. XVII, teve de esperar pelo último quartel do século XX para se transformar em realidade.

Bibliografia:

TAVARES DA SILVA, C. (1983) - Escavações arqueológicas na ilha do Pessegueiro. AI. Madan, 2, p.20-22.

TAVARES DA SILVA, C. & SOARES, J. (1991) - Ilha do Pessegueiro. Estabelecimento romano da Costa Sudoeste. Correio da Natureza, 11, p. 10-16.

TAVARES DA SILVA, C. & SOARES, J. (1993) – Ilha do Pessegueiro. Porto Romano da Costa Alentejana. Lisboa: Instituto de Conservação da Natureza, 245 pp.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J. & COELHO-SOARES, A. (1982) - Escavações arqueológicas na ilha do Pessegueiro (3ª campanha, 1982). Clio, 4, p. 165-183.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J. & DIAS, L. F. (1980-81 ). Trabalhos arqueológicos na ilha do Pessegueiro (1980). Setúbal Arqueológica, 6-7, p. 219-247.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J.; DIAS, L. F. & COELHO-SOARES, A. (1976-82) - Escavações arqueológicas na ilha do Pessegueiro (Sines). Notícia da 2.ª campanha (1981). Arquivo deBeja, 1 (S. 2), p. 11-45.

Joaquina Soares

Carlos Tavares da Silva

 

Fig. 1 – Ilha do Pessegueiro vista da fortaleza de terra. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 2 – Vista de conjunto das estruturas arqueológicas da época romana. Foto de Maurício Abreu.

Fig. 3 – O canal que separa a ilha de terra, com 250m de largura, possui excelentes condições de abrigo e de fundeadouro, junto da ilha. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 4 – Vista aérea da ilha do Pessegueiro e do canal que a separa de terra. Arquivo MAEDS.

Fig. 5 – Levantamento aerofotogramétrico da Ilha do Pessegueiro, com a delimitação da área escavada. Seg. Tavares da Silva e Soares, 1993.

Fig. 6 – Aspecto das escavações arqueológicas realizadas durante os anos 80 pelo Grupo de Trabalhos Arqueológicos do Gabinete da Área de Sines e Unidade de Arqueologia da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, com a colaboração do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, sob direcção científica de Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 7 – Planta esquemática com a representação das estruturas romanas postas a descoberto, diferenciadas em três fases construtivas sequenciais. A primeira fase corresponde à segunda metade do séc. I; a segunda pertence ao séc. II e a terceira, aos sécs. III-IV. Seg. Tavares da Silva e Soares, 1993.

Fig. 8 – Vista aérea das estruturas arqueológicas da época romana. Foto de Maurício Abreu.

Fig. 9 – Armazéns, construídos na segunda metade do séc. I, quando a illha se comportou como entreposto comercial e porto de apoio à navegação costeira. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 10 – Vista de conjunto de fábrica de salgas de peixe, com pátio central, construída no século III. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 11 – Reconstituição esquemática de fábrica de preparados piscícolas. Seg. Tavares da Silva e Soares, 1993.

Fig. 12 – Balneário. Em primeiro plano, o vestiário e em segundo, o hipocaustum. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 13 – Materiais correspondentes a ocupação ante-imperial romana: 1 – cerâmica pintada; 2 a 5 – ânforas ibero-púnicas; 6 – ânfora romana republicana (Dressel 1).

Fig. 14 – Materiais da fase IIA: sigillata sudgálica decorada. Estão presentes as formas Drag. 30 (nº1) e 37 (nos 2, 4 e 5).

Fig. 15 – Materiais da fase IIA: “paredes finas”.

Fig. 16 – Materiais da fase IIA: ânforas (1 – Dressel 2-4; 2 – Dressel 7-11; 3 e 4 – Beltran II; 5 e 6 – Dressel 14; 7 a 9 – Dressel 20).

Fig. 17 - Materiais da fase IIB: sigillata hispânica (1 – Drag. 15/17 de Andujar; 2 a 4 – Drag. 27) e sigillata clara A (5 – Hayes 6; 6 – Hayes 8A; 7 – Hayes 8B).

Fig. 18 – Materiais da fase IIB: sigillata clara A (1 – forma Hayes 14; 2 a 5 – Hayes 23B).

Fig. 19 – Materias da fase IIC: ânforas (1 a 7 – forma Almagro 50). Os números 1 a 4 são de proveniência algarvia e integram-se na fase IIC antiga. Os números 3 e 4 possuem a marca AEMHEL. O nº 5 pertence à fase IIC tardia.

Fig. 20 – Materias da fase IIC: ânforas (1 a 4 – forma Almagro 51a-b; 7 a 10 – Almagro 51c).

Fig. 21 – Planta da fortaleza de terra, frente à ilha do Pessegueiro. Projecto de Filipe Terzi. Finais do século XVI. Códice da Casa de Cadaval.

Fig. 22 – Planta do fortim da ilha do Pessegueiro. Projecto de Alexandre Massai. Finais do século XVI. Códice da Casa de Cadaval.

Fig. 23 – Na área mais elevada da ilha observam-se as ruínas do fortim construído segundo traça de Alexandre Massai, nos finais do séc. XVI, edificado para proteger as obras de construção do porto artificial dos ataques de corsários. Em primeiro plano, fábrica de salga de peixe da época romana.

Fig. 24 – Aspecto da pedreira da extremidade norte da ilha. Daqui saíram os blocos com os quais se começou a construir o molhe que deveria ligar esta extremidade da ilha ao Penedo do Cavalo, em uma extensão de 85 braças. Segundo o engenheiro responsável pela obras, Alexandre Massai, chegaram a ser construídas 28 braças do referido molhe (1593). O projecto pretendia atingir três objectivos: criação de um porto seguro, instalação de armações de atum e de sardinha, implementação do povoamento de uma região quase desabitada. Foto de Carlos Tavares da Silva.