A morte no Neolítico em Aljezur - sepulturas hipogeicas

Elisabete Barradas

 
Igreja de Nª Srª de Alva

Freguesia/Concelho:Aljezur

Localização:37°19´3”N e 8°47’21”W

Cronologia:Neo-Calcolítico

 

Hipogeu da Barrada

Freguesia/Concelho:Aljezur

Localização:37°19’18”N e 8°47’42”W

Cronologia:Neolítico

Introdução

As comunidades pré-históricas que habitavam o território de Aljezur, nos finais do 4º milénio e inícios do 3º milénio antes da nossa era construíram grutas artificiais na rocha calcária para sepultarem os seus mortos. Estes monumentos funerários coletivos, também designados como hipogeus, agrupam-se habitualmente em necrópoles e podem ter diferentes tipologias, refletindo variantes regionais. Nas Penínsulas de Lisboa e Setúbal estes monumentos são bem conhecidos e apresentam uma planta constituída por câmara funerária de planta circular ou subcircular, abóbada com claraboia e corredor, caso dos hipogeus da Quinta do Anjo (Palmela), Alapraia (Cascais) e Carenque (Amadora), ou sem claraboia como em S. Pedro do Estoril (Cascais), Praia das Maçãs (Sintra) e S. Paulo (Almada). No Alentejo, foram recentemente identificados em Beja e Serpa sepulcros coletivos do tipo poço com acesso vertical; no Algarve conhecem-se as necrópoles de hipogeus de Monte Canelas (Portimão) e os monumentos funerários de Aljezur, de morfologia mais complexa, que a seguir trataremos.

Em Monte Canelas foi identificado um conjunto de quatro hipogeus, na periferia do complexo funerário megalítico de Alcalar. O Hipogeu I, o melhor estudado e o único integralmente escavado até ao momento, era composto por duas criptas funerárias onde foram encontrados restos humanos de pelo menos 171 indivíduos, incluindo cinco inumações in situ, em posição fetal, sobre o chão da estrutura. Os mortos, que foram sendo sepultados ao longo de várias gerações, eram acompanhados por espólio votivo variado: lâminas, geométricos e pontas de seta em sílex, instrumentos de pedra polida (machados e enxós), alfinetes de osso, contas de colar discoidais e bitroncocónicas, furadores de osso e placas de xisto gravadas (Morán et al., 2007, p. 77-87).

A necrópole de Aljezur localiza-se nesta vila, no lado Este da Ribeira com o mesmo nome e é constituída por dois monumentos, o hipogeu da Igreja de Nª Srª de Alva e o hipogeu da Barrada, sendo provável existirem mais. Estes dois sepulcros situam-se em duas pequenas elevações de topo aplanado, sobranceiras aos férteis campos agrícolas da várzea e distam cerca de 400 m um do outro (Fig.1). Foram ambos escavados nos calcarenitos miocénicos, rocha branda e fácil de trabalhar e registam as seguintes coordenadas geográficas: 37° 19´ 3” N e 8° 47’ 21” W (hipogeu da Igreja de Nª Srª de Alva) e 37° 19’ 18” e N 8° 47’ 42” W (hipogeu da Barrada).

 

Hipogeu da Igreja de Nª Srª de Alva

A descoberta deste primeiro sepulcro ocorreu em 1881, no decurso de trabalhos de extração de pedras, junto à Igreja de Nª Sr.ª de Alva, como nos dá notícia Estácio da Veiga na sua obra Antiguidades Monumentais do Algarve, volumes I e II (Veiga, 1886). Este monumento forneceu restos osteológicos pertencentes a pelo menos 30 indivíduos para além de um abundante espólio. Possuía uma planta irregular, formada por seis hemiciclos dispostos em planos escalonados e segundo as descrições apresentadas pelo autor, não se conservaram indícios quer da entrada quer da cobertura (Fig. 2). A morfologia deste monumento sempre suscitou a dúvida e a curiosidade de diversos investigadores por se afastar do formato habitual das grutas artificiais da Estremadura, constituídas por uma câmara funerária circular com clarabóia antecedidas por antecâmara e/ou corredor. Estácio da Veiga considerava este depósito mortuário de todo o ponto singular pela novidade da sua excepcional configuração (1886, p. 146) e de facto, até à descoberta do outro hipogeu de Aljezur, com planta semelhante, este monumento não tinha paralelos no território português.

O espólio, abundante e diversificado, enquadra-se, segundo Victor S. Gonçalves (2005, p. 21), num contexto cronológico-cultural muito homogéneo, provavelmente da primeira metade do 3º milénio ou na transição do 4º para o 3º milénio a.C., correspondendo ao final do Neolítico/inícios do Calcolítico. Inclui artefactos (Figs. 3 e 4) de pedra polida: machados, enxós e uma goiva; em pedra lascada: lâminas, pontas de seta, alabardas, geométricos em sílex e dois núcleos em cristal de rocha; osso: furadores e alfinetes de cabeça postiça; cerâmica, dentes de Carcharodon megalodon (tubarão) e 23 placas de xisto gravadas (Fig. 5), objeto de um estudo monográfico (Gonçalves, 2005). Para além destes materiais, Estácio da Veiga refere ainda a existência de fragmentos de mós, percutores e outros artefactos líticos.

Quando o investigador escavou os níveis que restavam do monumento, os ossos humanos já tinham sido muito destruídos pelos trabalhadores da obra, pelo que não foi possível recuperar indicações relativas aos rituais funerários praticados nem à disposição dos objetos votivos no sepulcro e sua relação com os mortos. Sabe-se apenas que existiria um depósito de machados de pedra polida junto a um dos hemiciclos e que se encontraram ossos amontoados em frente a cinco crânios (Veiga, 1886, pp. 148-149).

Hipogeu da Barrada

Escavações realizadas em 2011 e 2013 no Sítio da Barrada, no âmbito de um projeto de investigação em curso dirigido por Silvina Silvério, Elisabete Barradas e Maria João Dias da Silva, permitiram descobrir um outro hipogeu a NW do local onde terá existido o primeiro sepulcro (Barradas et al., no prelo). Este monumento, tal como ocorre em Monte Canelas, é composto por duas salas, desta feita uma antecâmara e uma câmara funerária ligadas por uma passagem com degrau. O acesso ao exterior seria efetuado a partir da antecâmara, por uma rampa orientada para SW. O hipogeu da Barrada, embora seja mais pequeno que o sepulcro estudado por Estácio da Veiga, possui uma planta semelhante, com a antecâmara a apresentar configuração riniforme e a câmara a abrir-se em 3 absides, conferindo também ao monumento um aspeto polilobado (Figs. 6 e 7). As paredes são côncavas, ou subverticais com tendência côncava, e a cobertura seria em abóbada, desconhecendo-se a sua altura original embora o que resta da estrutura atinja mais de 1,10 m de altura. O comprimento total do monumento é de aproximadamente 5m, desde a rampa de entrada à parede Nordeste.

A escavação forneceu indícios relacionados com o ritual funerário: os mortos foram depositados exclusivamente na cripta maior, sem serem cobertos por terra e eram acompanhados por oferendas funerárias (machados e enxós de pedra polida, lâminas e geométricos em sílex, contas de colar e uma bracelete fabricada em concha de Glycymeris sp., vulgarmente conhecida como castanhola do mar) (Fig. 8C). Ocorreu a manipulação e remobilização das ossadas, utilizou-se ocre, amplamente documentado nos ossos, nas terras e no chão das duas salas do sepulcro que exibem uma coloração avermelhada, e parece ter havido uma compartimentação do espaço sepulcral, cujo significado ainda não é claro, testemunhada pela existência de uma laje fincada no chão da câmara e pelo negativo de uma outra (Figs. 6 e 7). O nível de ossos humanos encontrava-se selado pelos blocos de calcarenito provenientes do abatimento da cúpula, causa do abandono do monumento.

Como a escavação ainda está por concluir, não é possível determinar com segurança quantos indivíduos estariam aí sepultados, talvez uns dez, tendo em conta os dados atualmente disponíveis, número pequeno comparativamente ao de outros monumentos funerários similares, onde se chega a atingir mais de uma centena de inumações. Estão representados indivíduos de várias idades, desde crianças a adultos, muito provavelmente de ambos os sexos; a maioria dos ossos sem continuidade anatómica encontra-se dispersa pela câmara, mas algumas conexões atestam a existência de inumações primárias.

A relação entre as duas sepulturas hipogeicas de Aljezur é de todo evidente, quer pela proximidade, quer pelas afinidades arquitetónicas, no entanto, no que diz respeito ao espólio há a assinalar grandes diferenças, que parecem ter um significado cronológico. De facto, na Barrada o conjunto artefactual é mais arcaico: existem micrólitos em vez de pontas de seta, está presente a pulseira em concha de Glycymeris sp., enquanto as placas de xisto e cerâmica estão ausentes. Isto parece indicar que o monumento da Barrada é o mais antigo dos dois e que muito provavelmente foi construído e utilizado durante o Neolítico médio enquanto o da Igreja de Nª Srª de Alva, cuja construção e uso inicial poderá remontar também ao Neolítico final, foi utilizado durante um período de tempo mais alargado, podendo alcançar o Calcolítico.

Face ao estado atual dos conhecimentos parece plausível que os dois sepulcros não tenham funcionado em simultâneo mas em continuidade: a construção do monumento da Igreja de Nª Srª de Alva poderá ter sido motivada pelo colapso do hipogeu da Barrada e seu consequente abandono. No entanto aguardam-se novos dados, nomeadamente as datações por radiocarbono e a conclusão da escavação no Sítio da Barrada, para validar estas hipóteses.

Bibliografia

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Fig. 1- Localização dos hipogeus de Aljezur na C.M.P. 584 (2005), esc.1/25000. O hipogeu da Igreja de Nª Srª de Alva está assinalado com o nº 1 e o da Barrada com o nº 2.

 

Fig. 2 – Planta e localização do hipogeu da Igreja de Nª Srª de Alva segundo Estácio da Veiga (1886, Est. A, fig. 37).

Fig. 3 – Espólio da necrópole da Igreja de Nª Srª de Alva, seg. Leisner, 1965, apud Gonçalves, 2005.

Fig. 4 – Espólio da necrópole da Igreja de Nª Srª de Alva, seg. Leisner, 1965, apud Gonçalves, 2005.

Fig. 5 – Ídolos-placa de Aljezur (necrópole da Igreja de Nª Srª de Alva), seg. Estácio da Veiga, 1866, apud Gonçalves, 2005.

Fig. 6 – Vista geral do hipogeu da Barrada, no final da campanha de 2011, com a antecâmara em primeiro plano. Foto de E. Barradas.

Fig. 7 – Nível funerário da câmara principal do hipogeu da Barrada, visto a partir de Sul (campanha de 2013). Observam-se manchas vermelhas de ocre sobre os ossos e nas terras que os embalam, bem como dois instrumentos de pedra polida, assinalados pelos círculos. As setas indicam os negativos de lajes usadas na compartimentação do espaço. Foto de E. Barradas.

Fig. 8 – Algum espólio proveniente do hipogeu da Barrada: A – elementos de projéctil geométricos em sílex; B - dois machados de pedra polida encontrados junto à parede norte da câmara funerária; C - pulseira em concha de Glycymeris sp.. Fotos E. Barradas.