O sítio da Gaspeia e os ritmos da neolitização na costa sudoeste portuguesa

Joaquina Soares

Carlos Tavares da Silva

Neolitização: antecedentes

No sul de Portugal, a neolitização comportou-se como um processo de transformação económica, social e cultural que se iniciou remotamente nos inícios do Holoceno, há cerca de 10 000 anos. As profundas alterações ambientais então ocorridas obrigaram os grupos de caçadores nómadas a explorarem um leque maior de recursos alimentares, pois a biomasssa estava então assaz fragmentada. A floresta temperada cobre extensas áreas e as faunas são tendencialmente de menores dimensões; os grupos de caçadores epipaleolíticos acentuam a componente recolectora na sua estratégia de subsistência; os alimentos de origem vegetal tendem a dominar a dieta humana; ocorre um processo de litoralização que tira partido da diversidade de recursos das áreas costeiras e sobretudo estuarinas (Soares e Tavares da Silva, 2004). Generaliza-se, pois, no sul de Portugal, uma economia de largo espectro, onde os alimentos terrestres de origem vegetal crescem, como foi dito, tal como os de origem estuarina e marinha, ao contrário da dieta suportada pela caça de animais de manada de grande porte como acontecia no Paleolítico superior. Na segunda metade do VII milénio A.C., estes grupos de caçadores sofrem dinâmicas de agregação, territorializam-se (Soares, 1992), aumentam a sua densidade demográfica e suportam os custos sociais da mesma, perdem mobilidade, semi-sedentarizam-se e armazenam excedentes para os períodos de carência. Podemos já falar de comunidades mesolíticas relativamente estabilizadas, dotadas de uma estratégia de mobilidade logística (Soares, 1996), modo de produção de transição (caça-recoleccão-armazenamento) que, em situações de desequilíbrio demográfico-ecológico, como a que terá ocorrido na fímbria oceânica, integram precocemente, no segundo quartel/meados do VI milénio a.C., em datas de calendário, as espécies domésticas disponíveis na bacia mediterrânea, ou seja, os cereais (trigo e cevada), ovinos, caprinos e bovinos.

Diferentes ritmos de neolitização no Sudoeste (Fig. 1)

Em uma primeira fase (sítios de Vale Pincel I, Samouqueira II, Cabranosa, Padrão), a agricultura e criação de gado possuem carácter subsidiário face à caça-pesca-recolecção, mas a partir de finais do VI milénio A.C., na subsistência destas populações, a produção de alimentos adquire um lugar importante. Por fissão das comunidades neolíticas precoces, iniciam-se movimentos migratórios em direcção ao interior. Surgem um pouco por todo o território aldeias destes grupos camponeses, entre outras Salema já afastada do litoral (Santiago do Cacém), junto de curso de água e de solos ligeiros, mas aptos para a prática agrícola, onde surgiram pela primeira vez verdadeiros fornos de planta ovalada (0,70/0,80m x 0,50/0,40m) e paredes de barro cozido; Vale Marim II (Sines), no sopé do maciço eruptivo dos Chãos; Vale Vistoso (Sines), assente directamente sobre a vertente litoral.

Os grupos mesolíticos do Sado, os que mais resistiram à adopção da economia de produção de alimentos, a partir de finais do V milénio A. C. realizam um movimento contrário (interior-litoral); descem o rio acompanhando a deslocalização das condições estuarinas para montante (Carrasqueira, Comporta), por forma a preservarem o seu modo de vida de pescadores-mariscadores, e desenvolvem aí uma típica economia anfíbia, onde a pesca e a recolecção são dominantes, complementadas apenas por alguma agricultura, e pela criação de parcas cabeças de gado miúdo (ovicaprino).

No médio Sado, em Alvalade, na grande zona húmida e lagunar formada a expensas do Sado e da Ribeira de Campilhas, as comunidades mesolíticas prosseguem opção diversa. Adoptam a agricultura e criação de gado em finais do VI e primeira metade do V milénios A.C., criando um verdadeiro território neolítico que só agora começa a ser apreendido, com numerosos sítios instalados sobre areias, como Gaspeia, Corredoura (extensamente destruída pelas obras da Refer), Monte das Vinhas, Retorta, Pego da Mangra, entre outros.

Localização da Gaspeia

O sítio da Gaspeia foi objecto de sondagens arqueológicas em diversas campanhas (1981, 2003 e 2005), por iniciativa e/ou com a participação do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, sob a direcção dos signatários (Figs. 4, 5). O arqueossítio mostrou-se verdadeiramente excepcional por ter revelado a primeira e por agora única sequência estratigráfica Mesolítico-Neolítico, em uma região do Sado interior, bem como por ter propiciado contextos arqueológicos não perturbados, conforme atestam as numerosas estruturas de combustão, de ambas as camadas dos períodos referidos.

Localiza-se na margem esquerda do Sado (Figs. 2, 3), em troço onde o rio se dilatava em extensa toalha líquida. Estas escavações revelaram a existência de um acampamento mesolítico, sobre areias, datado em datas de calendário de 6030 a 5720 antes de Cristo, que se prolongou pelo período imediatamente seguinte – o Neolítico antigo (Fig. 6). O substrato arenoso não conservou restos faunísticos. Os raros carvões recolhidos nas estruturas domésticas permitiram a obtenção de uma data radiocarbónica; o seu estudo antracológico, realizado por Ernestina Badal, autoriza uma reconstituição muito generalista da paisagem vegetal: a região seria então coberta por floresta mista de pinheiro bravo (Pinus pinaster), pinheiro manso (Pinus pinea), sobreiro (Quercus suber) e azinheira (Quercus ilex) e o rio, por certo rico em peixe, comportar-se-ia como bebedouro natural para as faunas da sua envolvente, criando, supostamente, boas oportunidades não só de pesca, mas também de caça.

Ocupação mesolítica

A área escavada do acampamento mesolítico foi bastante mais reduzida que a do Neolítico, mas ainda assim tornou-se possível identificar e escavar um conjunto de seis estruturas domésticas, postas a descoberto na C. 2D (Fig. 6), que revelaram grande variedade morfológica e de dimensões, o que pode estar de acordo com uma maior diversidade funcional do que a revelada pelas estruturas da C. 2C, correspondente à ocupação neolítica. Outro aspecto em que as lareiras mesolíticas se diferenciam das neolíticas, respeita à intensidade de uso: os seixos rolados, predominantemente de quartzo, usados como acumuladores caloríficos, mostraram-se pouco afectados por acção do fogo; esta observação, que contrasta com o que se verificou nas estruturas neolíticas, parece indicar utilização pouco prolongada e, por inferência, estada curta do grupo mesolítico. Por outro lado, a C. 2D (ocupação mesolítica) ofereceu uma densidade muito inferior de termoclastos em relação à da C. 2C (ocupação neolítica), mais precisamente, 33kg/m3, contra 83kg/m3. Este facto confirma a observação anterior, de actividade de combustão menos intensa durante a primeira fase de ocupação do sítio.

Ocupação neolítica

A escavação da C. 2C (Fig. 4) permitiu exumar cerca de meia tonelada de termoclastos, quase exclusivamente de quartzo, provenientes do exterior das estruturas de combustão, o que representa uma densidade de cerca de 83 Kg/m3. Esta enorme quantidade de subprodutos pétreos da actividade de combustão é reveladora da intensidade da ocupação aí processada. O elevado número de lareiras aponta no mesmo sentido. As 17 estruturas identificadas foram construídas a partir de depressão aberta nas areias das Cs. 2D e, por vezes, C.3 (substrato natural). Essas depressões, em geral assimétricas, variavam ente 6cm e 25cm de profundidade e possuíam planta ovalada ou subcircular, cujo diâmetro máximo oscilava entre 45cm e 1,3m (Figs. 5 e 8).

Após a abertura da depressão para instalação da lareira, aquela era repleta de seixos predominantemente de quartzo; os de maiores dimensões, depositados na base. Construído deste modo o acumulador térmico, proceder-se-ia então, sobre a sua superfície, à combustão de elementos de natureza vegetal. O calor produzido ficaria conservado na estrutura durante muitas horas após a extinção das chamas. As bruscas diferenças de temperatura a que os seixos foram submetidos provocaram estalamentos e fracturas, mais numerosas à superfície do que na base das lareiras. Com efeito, no topo do enchimento das lareiras encontraram-se os termoclastos mais fragmentados e de menores dimensões. Esta observação mostra que as estruturas de combustão estudadas não pertencem ao tipo “forno polinésio”, mas sim a aparelhos de acumulação e conservação de energia calorífica, cuja parte activa na combustão seria constituída somente pela superfície da estrutura. A existência de auréolas carbonosas, contornando a base das grandes estruturas justifica-se face à natureza francamente arenosa do substrato em que as mesmas foram escavadas, sujeito a intensa lixiviação.

As estruturas de combustão referidas não só mostraram um uso intensivo, mas organizavam-se em bateria. Estariam ao serviço de uma forma de economia especializada, que consistiria, por hipótese, na conservação pelo fumo, de quantidades apreciáveis de peixe destinadas a estabelecimento de base, no âmbito de uma estratégia de mobilidade logística? Neste cenário, a Gaspeia comportar-se-ia como um acampamento sazonal dedicado à caça e em especial à pesca fluvial com processamento do pescado para consumo diferido.

Indústria lítica

A indústria em pedra lascada encontra-se bem representada quer na fase de ocupação mesolítica quer na do Neolítico, revelando as mesmas estratégias de aprovisionamento das matérias-primas (os baixos terraços plistocénicos do Sado, adjacentes ao acampamento), e idênticas técnicas de talhe, com destaque para a debitagem lamelar e técnica do microburil, destinadas à produção de elementos de projéctil (zagaias ou arpões) em forma de triângulo e em crescente.

Na importante actividade artesanal do talhe lítico, encontram-se presentes os subsistemas tecnológicos expedito e uso-intensivo, em ambas as fases da ocupação humana do sítio. A tecnologia e tipologia líticas do Mesolítico (Fig. 10) prolongam-se, sem descontinuidades, pela ocupação do Neolítico antigo, mantendo-se as mesmas estratégias de obtenção e redução das matérias-primas, o carácter marcadamente microlítico dos produtos de debitagem, o enfoque na produção de elementos de projéctil, de tipo crescente, e o desenvolvimento do talhe sobre cristal de rocha.

Os terraços baixos plistocénicos do Sado, em particular o que fica adjacente ao povoado e aflora no paleo-talude do rio, deverão ter sido a principal fonte de aprovisionamento da matéria-prima para a manufactura da utensilagem lítica. A partir do córtex conservado nos artefactos foi possível constatar que não só o quartzo leitoso, mas também as rochas ígneas, o grauvaque e o chert/sílex chegaram ao povoado sob a forma de seixos rolados. O sílex é escasso e heterogéneo, revelando uma origem poligénica; uma parte dessa matéria-prima foi recolhida na cascalheira fluvial próxima, facto que explica a referida heterogeneidade, mas outra terá chegado sob a forma de núcleos, parcialmente configurados. As variedades de sílex utilizadas podem ser distribuídas por três grupos principais: sílex dourado, de muito boa qualidade, presente em um número muito restrito de artefactos; sílex nas cores vermelho-acastanhado-púrpura, também pouco significativo, e o sílex cinzento e cinzento esverdeado, que se aproxima da variedade mais utilizada nos concheiros mesolíticos do baixo vale do Sado.

O uso criterioso e intensivo das matérias-primas siliciosas manifesta-se, por exemplo, no aproveitamento dos próprios subprodutos de talhe de módulo lamelar; mesmo quando pela sua pequena largura (4mm), seria mais provável terem sido abandonadas como resíduos da técnica do golpe de buril, algumas microlamelas revelam inequívocos traços de uso nos seus bordos laterais. Este comportamento encontra-se presente em ambas as fases de ocupação.

O cristal de rocha mereceu elevado apreço. Recolhido localmente, nos bordos da bacia mesocenozóica de Alvalade, chegava ao povoado sob a forma de cristais de pequenas dimensões, de onde eram extraídas lamelas de gumes acerados, que ainda hoje conservam o fio cortante.

Os núcleos surgem em volumes maiores quando a matéria-prima é o quartzo, localmente muito abundante. Encontram-se em várias fases de conformação, desde o simples seixo testado por um ou dois levantamentos, até ao pequeno núcleo de lascas, subprismático, com dois planos de percussão perpendiculares. Os núcleos de sílex/chert são escassos e de diminutas dimensões, reveladoras da sua exploração intensiva. Também os núcleos de cristal de rocha, que em geral permitem identificar o cristal-suporte, revelam elevado índice de utilização, mostrando negativos das sucessivas extracções de lamelas.

A média das larguras das lamelas é de cerca de 7mm e a média das espessuras, 2,5mm. O índice de adelgaçamento é de 15,3; os exemplares completos são pouco numerosos e a média dos comprimentos deverá ser considerada com reservas: 22,3mm. Estas dimensões mostram bem o carácter microlítico da utensilagem, ao serviço de um afirmado conceito de instrumentos compósitos, e aproximam inequivocamente o padrão tipométrico da indústria lítica da Gaspeia da dos concheiros mesolíticos do paleoestuário.

O estilo de debitagem chamada de Coincy encontra-se muito bem representado, enquanto o estilo Montbani, que produz lamelas muito regulares, faz uma muito breve aparição. Esta observação é aplicável a ambas as ocupações, criando a imagem de continuidade a que temos vindo a aludir.

No que se refere à tipologia, ambas as fases de ocupação se mostram muito semelhantes. A par de uma razoável presença de instrumentos não retocados, com vestígios de uso, surgem os pouco especializados entalhes e denticulados, alguns raspadores, lamelas de dorso e geométricos, representados no Mesolítico por crescentes e no Neolítico antigo por crescentes e triângulos. A produção de geométricos recorreu à técnica do microburil.

O aspecto mais impressivo no que respeita à indústria lítica da ocupação neolítica de Gaspeia é a ausência de instrumentos em pedra polida/bojardada, associados, como é sabido, à economia de produção de alimentos. Este indicador mostra que nos encontramos verdadeiramente numa fase de transição. O contíguo povoado da Corredoura, barbaramente destruído pelas obras da REFER, mesmo à superfície apresentava instrumentos em pedra polida e elementos de mós manuais, colocando em evidência o sucesso da actividade agrícola entre as populações de Alvalade do Sado.

Olaria

A cerâmica (Figs. 11), exclusiva da ocupação neolítica, é constituída por recipientes montados manualmente, com formas simples, esferoidais/ovóides de bordos não espessados, e superfícies externas decoradas por motivos impressos e/ou incisos; Por vezes, as peças cerâmicas, para uso culinário e/ou armazenagem, são providas de elementos de preensão constituídos por pequenas asas de perfuração horizontal. Este conjunto, estilisticamente muito homogéneo, é atribuível ao Neolítico antigo evolucionado do Centro e Sul de Portugal.

Bibliografia

SOARES, J. (1992) – Les territorialités produites sur le littoral Centre-Sud du Portugal au cours du processus de néolithisation. Setúbal Arqueológica, 9-10, p. 19-35.

SOARES, J. (1996) – Padrões de povoamento e subsistência no Mesolítico da Costa Sudoeste portuguesa. Zephyrus, 49, p.109-124.

SOARES, J. & TAVARES DA SILVA, C. (2004) – Alterações ambientais e povoamento na transição Mesolítico-Neolítico na Costa Sudoeste. Evolução geohistórica do litoral português e fenómenoscorrelativos. Lisboa: Universidade Aberta, p. 397-423.

Fig. 1 – Ritmos de neolitização da Costa Sudoeste: A – área de neolitização pioneira (segundo quartel/meados do VI milénio A.C.), a partir do Mesolítico regional; B – área de neolitização do médio Sado a partir do Mesolítico local; C – território mesolítico do Baixo Sado com cerâmica; D – deslocalização do Mesolítico terminal do Sado para a foz do rio (Comporta), com constituição de território de economia agro-marítima (transição para o IV a inícios do III milénios A.C.).

Fig. 2 – Localização da Gaspeia. Foto Google earth.

Fig. 3 – Gaspeia, 2002. Vista geral do sítio arqueológico, com abertura de sondagens ao longo da via férrea. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 4 – Gaspeia, 2005. Escavação da Camada 2C (Neolítico antigo). Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 5 − Aspecto da escavação, após a desmontagem das estruturas de combustão da Camada 2C. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 6 – Gaspeia, 2005. Base do nível do Mesolítico, com duas estruturas de combustão repletas de seixos fracturados por acção térmica. Este tipo de lareira, constituído por depressão aberta nas areias e preenchida por calhaus, funcionava como acumulador térmico que irradiava calor mesmo depois das chamas se extinguirem. Foto de Carlos Tavares da Silva.

Fig. 7 – Gaspeia, 2005. Perfil estratigráfico obtido no talude a norte da via-férrea, do segmento compreendido entre o Quadrado D12 do Sector 6 e o Quadrado D14 do Sector 26; atenda-se à maior concentração de termoclastos na Camada 2.

Fig. 8 – Gaspeia, 2005. Perfis de estruturas de combustão neolíticas da Camada 2C.

Fig. 9 Gaspeia, 2005. Perfis de estruturas de combustão mesolíticas da Camada 2D.

Fig. 10 – Gaspeia. Indústria lítica da ocupação mesolítica.

Fig. 11 – Fragmento de recipiente cerâmico com decoração impressa e incisa. Foto de Rosa Nunes. Arquivo MAEDS.

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