Inventário do Património Histórico-Cultural do aglomerado urbano de Odemira

António Martins Quaresma

Não se podendo considerar um território de grande riqueza do ponto de vista do património edificado, o concelho de Odemira possui valores dignos de referência. Todas as freguesias têm, por exemplo, a sua igreja paroquial e, por vezes, ermidas, com mais ou menos merecimento patrimonial, sendo de citar particularmente: em Colos, a igreja paroquial, com os seus retábulos barrocos e pormenores manuelinos, a antiga igreja da Misericórdia (Santa Isabel), bem como duas interessantes ermidas rurais (Nossa Senhora do Carmo/Afincerna e Nossa Senhora das Neves); em Sabóia, a igreja paroquial, em que é de realçar um bom conjunto retabular setecentista; em São Martinho das Amoreiras, a sua igreja de duas torres e alguns bons apontamentos interiores; e, em Vale de Santiago, a igreja paroquial, com o retábulo barroco do seu altar-mor.

Quanto a edificações militares, existem, em Milfontes, um forte do período filipino, em São Luís, a ruína de um antigo castelo que foi ocupado na época islâmica, e, em Colos, os restos de uma cerca, que terá sido também ocupada na mesma época, no cerro onde se ergue a ermida de Nossa Senhora das Neves.

De resto, é possível encontrar em freguesias, como São Luís, São Teotónio, Relíquias, Vila Nova de Milfontes e Luzianes, exemplos de casas rurais tradicionais, de fontes, de pontes e, nas povoações, de arquitectura urbana vernácula, frequentemente influenciada pela arquitectura erudita, desde o barroco ao modernismo.

No espaço rural, foi muito generalizada a construção em taipa, mas também ocorre em alvenaria de pedra e barro e até de pedra e cal. Nas povoações, foi igualmente muito utilizada a taipa, embora, seja frequente, sobretudo nos edifícios maiores, a alvenaria de xisto, com argamassa de barro ou cal e areia. Hoje, a construção em taipa está a ser recuperada por um pequeno grupo de arquitectos e uma nova geração de taipeiros. Outro material, a cortiça, outrora utlizada em revestimento de interiores, passou a ter usos mais limitados.

Enquanto capital concelhia, a vila de Odemira contém um dos conjuntos mais interessantes. No urbanismo, destacamos o conjunto constituído pela Praça Sousa Prado e pelas duas ruas paralelas descendentes. No património religioso, as igrejas de Santa Maria e São Salvador, a igreja secularizada da Misericórdia e a ermida de Nossa Senhora da Piedade; no administrativo e judicial, os edifícios da Câmara Municipal, do Tribunal, da Repartição de Finanças e da antiga Casa do Povo; nos edifícios industriais, os Moinhos Juntos e a antiga Fábrica Miranda; nos transportes, a ponte sobre o rio Mira e os marcos da antiga barca da passagem do rio; no abastecimento público de água, o chafariz da Praça Sousa Prado, a Fonte Férrea e a Bica da Rola; no conjunto das moradias privadas, existentes, designadamente, na Praça Sousa Prado, na Rua Serpa Pinto, na Rua Alexandre Herculano e no Largo José Maria Lopes Falcão, entre outras artérias, relevam-se algumas. Outros edifícios, públicos e particulares, do século XX, merecem também atenção.

Assim, sem se procurar exaustividade, considerar-se-ão, numa apresentação mais detalhada, os seguintes elementos: o conjunto urbanístico formado por Praça Sousa Prado/Rua Sousa Prado/Rua José Maria de Andrade; as igrejas de Salvador, Santa Maria e Misericórdia, a ermida da Senhora da Piedade, o edifício da Câmara Municipal, uma moradia particular, o edifício da antiga fábrica Miranda, o chafariz da Praça Sousa Prado, os padrões da barca da passagem do rio e a ponte sobre o rio Mira.

1 - Da Idade Média a finais do século XIX

Arquitectura Religiosa:

Freguesia de São Salvador e Santa Maria (Odemira)

Igreja da Misericórdia

Localização:37°35'49.45"N; 8°38'29.67"W.Largo Miguel Bombarda, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: 1560-70/XX

Descrição:Situada no Largo Miguel Bombarda, próximo da igreja do Salvador, a Misericórdia de Odemira foi criada em 1569-70, mas, enquanto se construía a sua igreja, ficou sediada, provisoriamente, na antiga igreja do Espírito Santo. Aí esteve até 1576, altura em que a sua nova “casa” ofereceu condições para a albergar. Esta não estava, porém, concluída, o que só terá acontecido depois de 1591. Trata-se duma construção de dimensão apreciável, amparada por gigantes, que avulta sobre a elevação onde foi construída. Possivelmente, além do empenho dos “grandes” locais, estará ali a “mão” do conde de Odemira D. Sancho de Noronha.

De acordo com uma tipologia das igrejas das Santas Casas, o edifício tem planta longitudinal, composta por nave única e sacristia. Virada a sul, a fachada principal apresenta-se enquadrada por contrafortes em escorço. O portal de mármore, de verga recta, mainelado, é flanqueado por pilastras coríntias, encimadas por urnas com decoração de troféus e grinaldas em baixo-relevo, e rematado por um nicho, ladeado por pilastras encimadas por urnas e emoldurado por volutas que suportam uma verga saliente. A escultura que até há pouco tempo esteve no nicho é de Nossa Senhora, conforme legenda epigráfica gravada sobre o nicho: ORA PRO NOBIS SAMTA DEI GENITRIX. Trata-se de uma simplificação do “mistério” das Misericórdias, a visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel, que surge em muitas igrejas destas irmandades.

No interior, a nave não se diferencia, em termos de volumetria, da capela-mor; todavia, por motivos de funcionalidade e hierarquia, segundo o modelo canónico, a capela-mor ocupava um plano mais elevado, cujo nivelamento só ocorreria com as obras de adaptação realizadas no século XX. Um sistema de trompas de ângulo, em meia-laranja, com arranque em mísulas colocadas a cerca de dois terços da altura das paredes, converte a base rectangular numa sanca de forma oval, solução arquitectónica única, à época, na região. Ao mesmo nível, marcando a transição dos planos, corre, ao longo das paredes, um duplo friso, apenas interrompido em locais onde aparentemente se adossavam os altares.

Nesta “igreja-caixa”, como a de São Roque, em Lisboa, sem cabeceira definida arquitectonicamente, o altar-mor elevava-se alguns degraus relativamente ao corpo, como agora é visível pelo desnível da base enxaquetada dos painéis pintados. Ao fundo, o altar-mor, com retábulo certamente maneirista, retirado no século XVIII, ficaria isolado por grades também de madeira. As paredes eram profusamente decoradas com pinturas policromas, de que perduraram abundantes vestígios. Entre essas composições, avultam, na cabeceira da igreja, a Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel; na parede do lado da Epístola, a Genealogia da Virgem, tema mariano caro à espiritualidade tardo-medieval, que continuou a ser cultivado na época da Reforma Católica; nos quatro ângulos, estão representados os Evangelistas. São trabalhos característicos da arte regional na transição da do século XVI para o XVII.

Uma vez secularizada, após a instauração da República, procedeu-se à sua adaptação a novas funções, com a perda dos altares e a recolha da imaginária e outras alfaias nas igrejas de São Salvador e Santa Maria. Também o exterior terá sofrido alterações, embora menos significativas.

Em 1938, a antiga igreja foi arrendada à Legião Portuguesa, para seu quartel local, tendo sido então vazada a área do altar-mor, no intuito de ampliar o espaço aproveitável, obra que alterou a sua posterior leitura. Acompanhando os vários usos profanos do monumento, também o adro recebeu modificações, destinadas a melhorarem o seu enquadramento urbano. O espaço entre as igrejas da Misericórdia e de São Salvador viria a ser unificado, propiciando a realização de eventos festivos e recreativos (bailes, projecções cinematográficas ao ar livre, etc.).

Bibliografia sucinta:GOMES, P. V. (2001) -Arquitectura, Religião e Política em Portugal no Século XVII. A Planta Centralizada. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto; MOREIRA, R. (2000) - As Misericórdias: Um Património Artístico da Humanidade. In M. N. C. GUEDES(dir.) - 500 Anos das Misericórdias Portuguesas. Lisboa: Comissão para as Comemorações dos 500 Anos das Misericórdias, p. 142-143; QUARESMA, A. M. & FALCÃO, J. A. (no prelo) - Igrejas Históricas de Odemira. Beja: Diocese de Beja e Município de Odemira; SÁ, Isabel dos Guimarães & PAIVA, J. P. (2004) - Introdução. In J. P. PAIVA (coord.), Portugaliæ Monumenta Misericordiarum. A Fundação das Misericórdias: O Reinado de D. Manuel I,3. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa – União das Misericórdias Portuguesas;SÁ, Isabel dos Guimarães (2002) - As Misericórdias da fundação à União Dinástica. In J. P. PAIVA (coord.), Portugaliæ Monumenta Misericordiarum. Fazer a História das Misericórdias, 1. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa – União das Misericórdias Portuguesas; TAVARES, M. D. de Sousa (2008) -As Pinturas Murais da Igreja da Misericórdia de Odemira. Caracterização e Enquadramento no Panorama Decorativo Religioso da Região (Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Évora). Évora: Universidade de Évora.

Webgrafia: FALCÃO, J. A. &PEREIRA, R. E. (1996) - Misericórdia de Odemira. URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4347(acedido em 21 de Abril de 2014).

Fig. 1 - Fachada lateral com gigantes. Postal ilustrado: Cliché Pelys. Edição Silva Júnior.

Fig. 2 - Aspecto geral. Foto Câmara Municipal de Odemira/Luís Guerreiro.

Fig. 3 - Fachada principal. Foto CMO/Luís Guerreiro.

Fig. 4 - Portal, com a imagem no nicho. 1988. Foto AMQ.

 Fig. 5 - Portal. Pormenor. 1988. Foto AMQ.

Fig. 6 - Portal. Imagem de Nossa Senhora, no nicho. 1988. Foto AMQ.

Fig. 7 - Pintura no interior. Foto CMO/Luís Guerreiro.

Fig. 8 - Pintura no interior. Foto CMO/Luís Guerreiro

Fig. 9 - Pintura no interior. Foto CMO/Luís Guerreiro.

Igreja do Salvador/ de S. Salvador

Localização:37°35'48.70"N; 8°38'28.01"W (Largo Miguel Bombarda), Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: Séc. XIV/ sécs. XVI e XVII.

Descrição: Situada no centro da vila, a primitiva igreja matriz do Salvador, de Odemira, remontará ao século XIV, altura em que se terá verificado a expansão extramuros da povoação. Numa altura em que o território odemirense estava distribuído por duas únicas paróquias (Santa Maria e Salvador), era sede da menos importante delas, situação que se alterou, por finais do século XVI, quando neste território foram criadas quatro novas paróquias rurais. Em Setecentos, ocorrem notícias de litígio entre os dois priores de Odemira, reivindicando, cada um, para a sua igreja o estatuto de principal, qualidade que Salvador parece ter conseguido então obter.

O conspecto actual desta igreja resulta da reedificação levada a cabo em finais do século XVI, seguida da grande empreitada de 1693-1694, fases que estão patentes na linguagem arquitectónica erudita do edifício, de fisionomia maneirista e barroca, ao invés da maioria dos seus congéneres, que apresentam carácter predominantemente vernáculo.

Durante a segunda metade do século XVIII, a fachada principal recebeu novo frontão, de feição rococó. Desta reforma, são também as pilastras dos ângulos, ritmadas pela alternância de faixas lisas e bujardadas, e os grossos fogaréus, cujas bases reaproveitaram parte das antigas estruturas geométricas de base quadrangular das obras do século XVII. Subsistem, contudo, quatro pirâmides seiscentistas, coroando os cunhais da sacristia, da fachada cega da ábside e da empena do mesmo lado.

Orientado a nascente, como era regra, e antecedido por escadaria, o edifício apresenta a fachada principal, rematada numa empena em curva e contracurva, moldurada pelos citados cunhais apilastrados de cantaria rusticada, coroados por fogaréus. O portal da frontaria datará de finais do século XVII. Trabalho de fina lavra, em cantaria branca, sóbrio mas elegante, conserva marca da tradição “chã”, impressa no conjunto. De lintel recto, é encimado por um janelão e um óculo.

A cobertura da torre sineira possui remate campaniforme, com terminação bolbosa, e quatro fogaréus dispostos nos cantos, de pendor rococó, introduzidos no século XVIII.

De nave única, o interior conserva duas capelas do lado do Evangelho, com arcos de volta perfeita. A capela-mor, separada da nave por arco triunfal de volta perfeita, é coberta por abóbada. Na parede da ousia permanece a magnífica pintura, a óleo sobre tela, que representa o Santíssimo Salvador do Mundo; como indica o tema, alusivo ao orago da igreja, terá feito parte do antigo retábulo principal. Ao lado, um expressivo Cristo Crucificado.

Na sacristia, observam-se, particularmente, um lavabo de cantaria de duas bicas, de fins de Seiscentos, e uma pedra de sepultura, com epígrafe legível. O ex-voto pendurado numa das paredes é proveniente da ermida de Nossa Senhora da Piedade.

Cerca de 1970, o interior do edifício foi remodelado, sob inspiração da reforma litúrgica do II Concílio do Vaticano (1963), remodelação a que estiveram ligados o arquitecto Castro e Solla e o escultor João Charters de Almeida. A solução, arrojada, conferiu-lhe aproximadamente o aspecto despojado que hoje ostenta, apesar de algumas alterações posteriores.

Bibliografia sucinta:GOMES, P. V. (1991) - Fachadas de Igrejas Alentejanas entre os Séculos XVI e XVIII. Penélope, 6. Lisboa, p. 21-40; MATOS, F. M. (2006) - Igreja de São Salvador (Matriz de Odemira). In Á. Duarte de ALMEIDA & D. BELO (dir.), Portugal – Património. Guia-Inventário. Beja-Faro, 9. Col. B. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 159; QUARESMA, A. M. & FALCÃO, J. A. (no prelo) - Igrejas Históricas de Odemira. Beja: Diocese de Beja e Município de Odemira.

Fig. 1 -Igreja e adro do Salvador, cerca de 1940. Postal ilustrado, in Áurea Paes Falcão. Pequena Monografia do Concelho de Odemira, 1943, p.25, inédita (na biblioteca de Raul Almeida).

 Fig. 2 - Fachada principal. Foto Câmara Municipal de Odemira/ Luís Guerreiro.

 Fig. 3 - Alçado lateral. Foto AMQ.

 Fig. 4 - Inscrição colocada na parede, junto à porta travessa, proveniente do demolido convento de Santo António. Foto AMQ.

 Fig. 5 - Aspecto do interior. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 Fig. 6 - Óleo colocado na parede da ousia. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 Fig. 7 - Jesus Crucificado. Foto AMQ.

 Fig. 8 - Sacristia. Lavabo. Foto AMQ.

 Fig. 9 - Sacristia. Pedra tumular, com data de 1587. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 10 - Sacristia. Ex-voto, proveniente da ermida da Senhora da Piedade. Foto Jorge Vilhena.

Igreja de Santa Maria

Localização:37°35'48.46"N; 8°38'26.14"W, Rua Serpa Pinto,Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: Sécs. XVI-XIX

Descrição:A actual igreja paroquial da freguesia de Santa Maria, da vila de Odemira, é a antiga igreja do Convento de Santo António, adaptação resultante de vicissitudes políticas nacionais e das condições da própria matriz de Santa Maria, ocorridas na primeira metade do século XIX.

Apesar de, nos inícios do século XIV, a igreja de Santa Maria sofrer, em proveito da Coroa, uma taxação superior à da de São Salvador, o que indica posse de maior riqueza, verifica-se, a partir da segunda metade de Quinhentos, uma inversão desta posição, com a criação de novas paroquias rurais.

A igreja situava-se na presumível área de expansão tardo-medieval da vila, espaço que, no século XVI, viria a confrontar com a cerca do convento franciscano. Tratar-se-ia, por certo, de um edifício um pouco menos avantajado do que o congénere de São Salvador, tendo a fachada principal aberta, tudo indica, para o antigo Largo de Santa Maria.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, surgem notícias de várias obras, mas também de algumas desconsiderações cometidas pelos fregueses. O certo é que, aquando da instauração do Liberalismo, a igreja de Santa Maria sofria de considerável abandono e ruína; ao mesmo tempo, a extinção do convento franciscano tornou disponível uma igreja em boas condições. Assim, enquanto a velha igreja de Santa Maria era demolida, a do convento era entregue à paróquia para substituir aquela nas funções de igreja paroquial.

O convento de Santo António de Odemira teve início em 1531, data que o cronista Fr. Fernando da Soledade perfilhou “mais por conjectura, q͂ por noticia certa da sua fundação”. Odemira localiza-se, com efeito, numa região onde se verificou forte difusão das ordens mendicantes, em particular a dos Frades Menores. Beneficiou inicialmente do patronato dos condes de Odemira, que sepultaram aqui alguns dos seus membros. Com a legislação liberal, o convento foi nacionalizado, sendo, com a sua cerca, vendido em hasta pública, acabando a igreja, como se disse, entregue à paróquia de Santa Maria.

Esta igreja apresenta planta longitudinal, escalonada, composta por nave e capela-mor, mais estreita, tendo adossados, lateralmente, a torre sineira, o baptistério, a sacristia e outras dependências. A planta e a tipologia do edifício, bem como a composição dos seus alçados – com recurso a pilastras e contrafortes – inscrevem a construção no epimaneirismo da segunda metade do século XVII, em que sobressai o despojamento próprio das igrejas dos conventos franciscanos do Alentejo meridional.

Orientada a poente e antecedida por escadaria, a fachada principal é delimitada por pilastras e ostenta empena triangular; nela rasga-se um portal de lintel curvo encimado pelo janelão do coro. O campanário, datado de 1885, de olhais em arco pleno e coruchéu bolboso enquadrado por pináculos, avança em relação à frontaria, o que evidencia a sua construção tardia.

No interior da nave, avultam dois altares laterais com retábulos de talha, do século XVIII, cujas colunas torsas são decoradas com motivos fitomórficos (parras e cachos de uvas) e zoomórficos (aves), aludindo simbolicamente à eucaristia e à eternidade. Na parede do lado da Epístola, destaca-se ainda o púlpito, com caixa e baldaquino de madeira, da mesma época. A capela-mor encontra-se separada da nave por arco triunfal ligeiramente ultrapassado, sobre pilastras de cantaria, e possui cobertura em abóbada de berço, com decoração estucada de fins do século XIX. Um retábulo de talha com tribuna e trono, obra tardo-barroca, fecha a parede da ousia.

Resta referir algumas peças em mármore: as pias de água benta, dum lado e doutro da porta principal, bem como a elegante pia batismal, com a sua taça gomeada e de bordo saliente, assente sobre pé em balaústre.

De fase tardia do século XIX, datam a cobertura da nave com forro de madeira e a ornamentação estucada da abóbada da capela-mor, além de outras alterações. Por volta de 1990, efectuaram-se obras, pouco afortunadas, que incluíram a construção de um coro alto, que substituiu o anterior, de madeira, do século XIX ou início do XX, e douramento de retábulos, a purpurina.

Bibliografia sucinta:QUARESMA, A. M. & FALCÃO, J. A. (no prelo) - Igrejas Históricas de Odemira. Beja: Diocese de Beja e Município de Odemira.

Webgrafia:FALCÃO, J. A. &PEREIRA, R. E. (1996) - Igreja Paroquial de Santa Maria de Odemira / Igreja de Santa Maria. URL:

http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6434 (acedido em 20 de Janeiro de 2014).

Fig. 1 - Largo de Santa Maria (José Maria Lopes Falcão), na primeira metade do século XX.

 

Fig. 2- Igreja de Santa Maria. Aspecto exterior. Foto Câmara Municipal de Odemira/Luís Guerreiro.

 

Fig. 3 - Aspecto interior. Foto AMQ.

 

Fig. 4 - Capela-mor. Foto AMQ.

 

Fig. 5 - Altar-mor. Foto AMQ.

 

Fig. 6 - Altar do lado da Epístola. Foto AMQ.

 

Fig. 7 - Altar do lado do Evangelho. Foto AMQ.

Fig. 8 - Púlpito. Foto AMQ.

 

Fig. 9 - Pia batismal. Foto AMQ.

 

Fig. 10 - Pia de água benta. Foto AMQ.

Ermida de Nossa Senhora da Piedade

Localização:37°35'46.22"N; 8°38'47.81"W. Av. Teófilo Trindade,Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: XIII

Descrição:Fundada em época incerta, mas não muito distante da conquista definitiva de Odemira, a primitiva ermida da Senhora da Piedade encontrava-se a pouca distância da vila, junto à margem esquerda do Mira, em lugar inundável pelas águas do rio, aquando das suas cheias. O seu sítio continuará uma muito antiga tradição, pré-cristã, de sacralidade. A esta ermida se referirá uma das Cantigas de Santa Maria (n.º 327), do século XIII, da autoria de Afonso X, o Sábio, que oferece um relato edificante de um milagre feito pela Virgem Maria. No fim da Idade Média ou no início da Moderna, a sua invocação concretizou-se em Nossa Senhora da Piedade, na tendência geral de conferir atributos à Senhora. A imagem de Nossa Senhora existente na ermida, de expressão dolente, tendo no colo o corpo do Filho tirado da cruz, segue o gosto da espiritualidade tardo-medieval.

Antigo lugar de devoção e peregrinação e erguida nas proximidades do “porto” da antiga barca e no início da estrada para o Algarve, quem tivesse que atravessar o rio, antes da construção da ponte metálica, em finais de Oitocentos, não deixaria de a contemplar bem de perto. No início do século XX, a antiga ermida, sujeita à invasão das águas do Mira e “abafada” pela nova ponte, foi abandonada, acabando por ser utilizada como habitação. Hoje, dela subsistem um arco arruinado de galilé e restos de paredes e abóbada.

Perto, a cerca de 100 m para oeste, em lugar elevado, foi edificada a actual ermida de Nossa Senhora da Piedade, concluída em 1903, com o apoio dum notável local, António José Gonçalves Correia Beles. Este edifício conservou a orientação do anterior (portal para nascente e cabeceira para poente), mas apresenta naturalmente diferenças. A sua planta longitudinal, escalonada, é composta por torre sineira, nave e capela-mor, mais estreita, a que se adossam os vátios anexos. Na fachada principal, orientada a este, rematada por uma balaustrada e enquadrada por soco e cunhais pintados de azul, recorta-se um portal de verga curva sobrepujado por dois janelões que enquadram um arco oval, cego. A torre sineira, de alçados com cunhais também pintados daquela cor, é coberta por coruchéu bolboso.

No interior, a nave, de tecto estucado, apresenta coro alto, púlpito dotado de baldaquino e duas capelas laterais faciais com seus retábulos de talha dourada e policromada. A capela-mor, a que se acede por tês degraus, é coberta por abóbada de berço em forma de arco abatido e preenchida por um retábulo de talha dourada e policromada, com o seu camarim.

Síntese tardia de tendências diversas, o conjunto incorpora elementos do neobarroco (composição dos alçados, planimetria) e do neo-rococó (retábulos, púlpito) com a prática construtiva de finais de Oitocentos (balaustrada, grade do coro), ostentando uma frontaria de marcado pendor “civilista”, similar a outros edifícios da vila, até a casas de famílias abastadas. No seu revivalismo de interpretação popularizante, pode vislumbrar-se a recriação da ideia de santuário herdada do Antigo Regime, mas aqui entendida segundo os parâmetros de uma outra “urbanidade”, pautada pela afirmação dos valores da burguesia local, que prosperara graças ao desenvolvimento económico da segunda metade de Oitocentos.

A lembrar a dimensão festiva do culto e a sugerir um prolongamento do “passeio público” de Odemira, no recinto da ermida existe um coreto, do início do século XX, que foi alvo de recente demolição e reconstrução de raiz, com materiais diferentes.

Bibliografia sucinta:QUARESMA, A. M. & FALCÃO, J. A. (no prelo) - Igrejas Históricas de Odemira. Beja: Diocese de Beja e Município de Odemira.

Webgrafia: FALCÃO, J. A. & PEREIRA, R. E.. (1996) - Santuário de Nossa Senhora da Piedade, URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4343 (acedido em 12 de Julho de 2014);

Fig. 1 - Cimalha da fachada da antiga ermida da Senhora da Piedade, vista por trás, em 1.º plano, à direita. Foto cedida por João Barros e Silva.

 

Fig. 2 - Arco de galilé da antiga ermida. Foto Câmara Municipal de Odemira/Luís Guerreiro.

 

Fig. 3 - Arco de galilé da antiga ermida. Pormenor. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 

Fig. 4 - Ermida nova da ermida da Senhora da Piedade, com coreto. Postal ilustrado.

 

Fig. 5 - Ermida nova, com coreto reconstruído de raiz. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 

Fig. 6 - Vista geral. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 

Fig. 7 - Fachada principal. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 

Fig. 8 - Aspecto do interior. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 

Fig. 9 - Aspecto do interior. Foto CMO/Luís Guerreiro

 

Fig. 10 - Ex-voto, hoje guardado na igreja do Salvador. Foto Jorge Vilhena.

 

Fig. 11 - Procissão, em 8 de Setembro de 1957. Foto Policarpo Godinho. Arquivo Municipal de Odemira.

Arquitectura Civil:

Freguesia de São Salvador e Santa Maria (Odemira)

Conjunto urbanístico Praça Sousa Prado/Rua Sousa Prado/Rua José Maria de Andrade

Localização: 37°35'50.05"N; 8°38'34.12"W, Praça Sousa Prado, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: Idade Média-Séc. XX

Descrição: A partir do núcleo medieval (Bairro do Castelo), a vila de Odemira iniciou, ainda na Idade Média, a expansão extramuros, sobretudo através dos eixos constituídos pela Rua Direita (R. Alexandre Herculano) e pela Rua do Algoz/Rua da São Francisco (R. Serpa Pinto). Em termos urbanísticos, não distinguimos, porém, até ao século XIX, qualquer espaço onde se tenha aplicado claramente um plano regular, não obstante certa rectilinearidade de algumas das ruas.

Em fins do século XIX, Odemira atravessava um ciclo de crescimento económico, fundado na produção agro-silvícola e industrial, que a capacidade de escoamento, proporcionada pelo seu porto fluvio-marítimo e pelo novo caminho-de-ferro, favorecia. Entretanto, chegavam, igualmente, ideias, com consequências na qualificação urbanística.

Neste quadro, surgem vários projectos urbanísticos, com destaque para criação de uma nova praça e abertura de duas ruas paralelas que dela divergiam. A Câmara Municipal, sob a presidência do proprietário e industrial corticeiro José Francisco de Sousa Prado, considerava-o “a primeira necessidade d’uma povoação da ordem d’Odemira, com o seu actual commercio” e “condição principal para o seu maior desenvolvimento comercial e progressivo aumento”. Justificava-se ainda porque o crescimento da população exigia mais habitação e, dada a topografia de Odemira, havia carência de terrenos para construção.

O projecto avançou rapidamente, com as expropriações necessárias. Em 1891, a nova praça estava quase concluída e, no ano seguinte, o Município transferiu para aqui o mercado que se realizava aos domingos e dias santos no Largo de Santa Maria. Cerca de uma dezena de anos depois, a Praça Sousa Prado, ou “Praça Nova”, espaçosa, com a sua incipiente arborização, o “chafariz velho” no topo, rodeada de alguns bons edifícios, tornara-se um espaço importante. As ruas que dela desciam na direcção do Poço Novo, R. Sousa Prado e R. José Maria de Andrade, também rapidamente ficaram compostas de casas, parte delas de sobrado. E através deste conjunto, desafogado e aformoseado, se conferiu a Odemira nova e qualificada capacidade habitacional e comercial e, importante, se aproximou a vila do seu cais fluvial e do Largo do Poço Novo (onde havia fábricas e se realizavam feiras), seguindo o percurso por detrás do Cerro do Peguinho, por artérias de boa circulação. Entretanto, a anterior “praça nova”, pequeno espaço defronte do edifício da Câmara, simples ponto de irradiação de ruas, perdera o título de “nova” para, poucos anos depois, passar a chamar-se Praça da República.

Urbanisticamente, a regularidade do desenho da Praça Sousa Prado, a sua forma e dimensão, as duas ruas rectilíneas que dela partem, bem como a sua origem num plano pré definido pelo poder, conferem a este conjunto um cunho bem moderno, se quisermos contemporâneo, o único da vila até então.

A Praça Sousa Prado acabaria por ser alterada, na sua função e aspecto, por meados do século XX, sendo ajardinada e deixando para a circulação automóvel apenas uma faixa lateral. Hoje, é frequentemente chamada “Jardim dos Patos”, referência aos patos que foram colocados num pequeno lago.

Bibliografia sucinta:QUARESMA, A. M. (2014) - O Rio Mira no Sistema Portuário do Litoral Alentejano (1851-1918). Lisboa: Âncora Editora.

 

Fig. 1 - Localização da Praça Sousa Prado (n.º 1) e ruas Sousa Prado e José Maria de Andrade (n.º 2), sobre planta de Odemira, adaptada de Arquivo Central do Ministério das Finanças, Arquivo/SG/EMP/ODE/003 (1937).

 Fig. 2 - Praça Sousa Prado. Início do séc. XX. Postal ilustrado: Edição Silva Júnior.

 Fig. 3 - Odemira, no início do séc. XX. À esquerda, em cima e em baixo, Praça Sousa Prado e ruas descendentes. In Illustração Portugueza, II anno, 26 de Dezembro de 1904, p. 128.

Fig. 4 - Praça Sousa Prado. Casa. Princípios do séc. XX. Postal ilustrado. Cliché Protásio.

Fig. 5 - Praça Sousa Prado. Arranjos. Meados do século XX. Postal ilustrado. Cliché Pelys. Edição Silva Júnior.

Fig. 6 - Praça Sousa Prado. Pormenor. Cerca 1960. Postal Ilustrado. Edição de António M. Balcinha, Odemira, foto Dimas.

Fig. 7 - Rua Sousa Prado, vista da Praça. Cerca de 1960. Edição de Daniel Coelho Camacho, Odemira.

Fig. 8 - Rua Sousa Prado, actualmente. Foto Jorge Vilhena.

Fig. 9 - Rua José Maria de Andrade, actualmente. Foto Jorge Vilhena.

Fig. 10 - Praça Sousa Prado, actualmente. Foto Jorge Vilhena.

Fig. 11 - Praça Sousa Prado, actualmente. Foto Jorge Vilhena.

Chafariz da Praça Sousa Prado

Localização: 37°35'48.76"N; 8°38'30.19"W . Praça Sousa Prado, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: 1823

Descrição: Elemento do mobiliário urbano, próprio da arquitectura infra-estrutural, o fontanário situado no topo da Praça Sousa Prado é composto por um tanque rectangular de cantaria e paredão, de um pano, delimitado por pilastras coroadas por urnas. Com remate mistilíneo, tem superiormente, no centro, um escudo em pedra, com as armas reais, envoltas por grinaldas, e, sob este, uma lápide em que se lê FEITO COM DON/NATIVOS DOS / MORADORES DES/TE CONCELHO / 1823. Na base, sobressai o maciço de cantaria, paralelepipédico com remate piramidal, em que se encastra a bica, também em cantaria.

O abastecimento de água à população de Odemira fazia-se, até àquela data, sobretudo com recurso a poços, mas, não obstante as posturas camarárias, o lançamento de detritos e águas sujas no interior dos poços públicos prejudicavam a qualidade das suas águas. Aliás, começavam a divulgar-se preocupações com a higiene e a saúde públicas, afectadas sobremaneira pela contaminação da água.

A edificação do chafariz, para o que houve o cuidado de mandar vir de fora (possivelmente de Lisboa) um dignificante escudo régio, constituiu um significativo benefício, resultante de nova dinâmica política e social produzida pela revolução liberal de 1820, concretizada pela Constituição de 1822. Porém, ele inspira-se ainda no paradigma das obras públicas do Setecentismo, muito vinculadas à condução das águas de consumo livre como elemento essencial da função urbana. Também em termos formais, a sua arquitectura retoma uma solução utilizada com frequência nas fachadas principais dos monumentos religiosos deste período. O alçado evidencia a “memória” das composições barrocas que marcaram o imaginário da região, embora a pedra de armas, proveniente certamente de Lisboa, já seja de inspiração rococó. Outros chafarizes, como o da Fonte Férrea e o da Bica da Rola (1916), também mostram soluções do mesmo tipo, a segunda, porém, já vinculada ao revivalismo neo-mourisco.

Na segunda metade de Oitocentos, é levado à prática um plano de melhoramentos urbanos, que, além do abastecimento público de água, se puseram em prática diversas medidas de saneamento.

Pelos finais do século XIX, com o projecto urbanístico do novo bairro Sousa Prado e a consequente inauguração da praça e de duas ruas contíguas, o chafariz adquiriu maior visibilidade e, por conseguinte, maior peso no quotidiano da vila. Local de encontro e sociabilização, especialmente de mulheres quando iam buscar água para consumo nos lares, acabaria por perder a sua função em data avançada do século XX, mas continua a ser uma referência arquitectónica na zona central de Odemira, lembrando a fase do abastecimento de água à população anterior ao fornecimento domiciliário hoje existente.

Bibliografia sucinta: QUARESMA, A. M. & FALCÃO, J. A. (no prelo) - Igrejas Históricas de Odemira. Beja: Diocese de Beja e Município de Odemira.

Webgrafia:FALCÃO, J. A. & PEREIRA R. E. (1996) - Fontanário da Praça Sousa Prado. URL:http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4342 (acedido em 23 de Março de 2014).

 

Fig. 1 - Chafariz da Praça Sousa Prado. Cerca de 1943. Foto in Áurea Paes Falcão. Pequena Monografia de Odemira, 1943, p. 42, inédita (na biblioteca de Raul Almeida).

Fig. 2 - Chafariz da Praça Sousa Prado. Vista geral. Foto AMQ.

 Fig. 3 - Pormenor, com remate e armas reais. Foto AMQ.

Fig. 4 - Bica. Foto CMO/Luís Guerreiro.

Fig. 5 - Projecto da Nova Fonte da Bica da Rola (pormenor). Arquivo Histórico Municipal de Odemira, AO 2-27.

Fig. 6 - Fonte da Bica da Rola. Foto Jorge Vilhena.

Fig. 7 - Fonte Férrea (1988). Foto AMQ.

Fábrica Miranda

Localização:37°35'47.07"N; 8°38'45.53"W. Av. Teófilo Trindade, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: 1898

Descrição: A moagem tradicional era feita por meio de moinhos de água (doce e salgada) e de vento. A eólica, de instalação tardia relativamente à hidráulica, estabeleceu-se em volta da vila de Odemira durante os séculos XVIII e XIX. Hoje, um dos moinhos (Moinhos Juntos), propriedade do Município, é mantido em funcionamento, com objectivos pedagógico-culturais e turísticos.

Por finais do século XIX, com a construção da ponte sobre o rio Mira, a sua margem esquerda passou a conter potencialidade de desenvolvimento industrial, e foi aí (hoje, Av. Teófilo Trindade) que José António de Miranda, um industrial originário de Lisboa, planeou instalar a nova e moderna unidade moageira. Até então, a moagem era feita exclusivamente nos tradicionais moinhos de água e de vento. Em Agosto de 1898, Manuel António de Miranda e Baltazar António da Silva Calapez, proprietário de Odemira, subalugaram um terreno na margem esquerda do rio Mira, junto à ponte, destinado a construção da fábrica. Meses depois, em fim de Dezembro, os dois homens constituíram uma sociedade em comandita de responsabilidade limitada para o comanditário, sob a firma Calapez & Comandita. Destinava-se à construção, montagem e laboração de uma fábrica de moagem de cereais e ao comércio de compra e venda dos mesmos, em grão ou moídos, podendo também descascar e branquear arroz. A sede ficava na própria fábrica. Em Dezembro de 1900, os dois sócios dissolveram-na, por acordo mútuo, ficando o activo e o passivo a cargo de Manuel António Miranda, então residente no Barreiro. Em 1901, já estava, portanto, na mão do industrial, em cuja família haveria de ficar: Manuel António de Miranda.

Através desta fábrica, a máquina a vapor fez a sua entrada em Odemira, representando localmente um passo em frente no sentido da modernização industrial. No início da década de 1920, já na posse de César Carvalho de Miranda, filho do fundador, o edifício foi remodelado e aumentado, ficando com o conspecto que ainda apresenta. Do projecto ter-se-á, presumivelmente, encarregado o engenheiro Álvaro Miranda, irmão de César de Miranda (que também projectou a sua casa de vilegiatura, em Milfontes).

Para melhor aproveitar a capacidade instalada, esta unidade passou também a oferecer serviços como a serralharia mecânica, os transportes de mercadorias e passageiros, os seguros, o comércio de adubos e, naturalmente, a comercialização dos seus produtos; abriu também um “salão cinematográfico”, em 1912, numa altura em que o cinema se tinha tornado um meio de comunicação, uma expressão de arte e um bom negócio. A diversificação das actividades era prática corrente na indústria moageira de então. Com o aumento da produção de arroz, em Portugal, diversificou também os produtos e iniciou o descasque de arroz.

Na década de 1970, a fábrica fechou as suas portas, acabando por ser adquirida pelo Município, que ali instalou armazéns e oficinas auto. Na década de 1990, parte das instalações foi adaptada para nela funcionar a Escola Profissional de Odemira.

A fábrica Miranda Lda. é exemplar único de arquitectura industrial, em Odemira, já na sua presença exterior, já na organização do espaço interior e no equipamento industrial. O edifício apresenta duas partes distintas: a leste, do lado do rio, um bloco, mais elevado, com dois pisos e subcave, iluminado por janelas de arco quebrado (mas, no interior, a alvenaria mostra terem sido feitos arcos redondos). Outro bloco, subdividido, por pilastras, em três corpos em empena, com cornija única; cada um destes é coroado por frontão triangular, com óculo no centro, e iluminado por janelas de verga recta. Um último corpo, ostentando janelas em arco, tem a frente parcialmente falsa, para manter a coerência linear da fachada. Contém, pois, elementos historicistas, como o frontão triangular clássico e as janelas de arco redondo e arco apontado.

O interior foi alterado aquando da instalação da Escola Profissional, mas conserva boa parte da organização interna, de funcionalidade industrial, tendo perdido, porém, algum equipamento fabril.

O edifício continua a ser utilizado pelo Município, nomeadamente como arquivo, mas, hoje, estudam-se reutilizações mais adequadas à sua importância arquitectónica e histórica.

Bibliografia sucinta:QUARESMA, A. M. (2014) - O Rio Mira no Sistema Portuário do Litoral Alentejano (1851-1918). Lisboa: Âncora Editora.

 

Fig. 1 - Aspecto da vila de Odemira, com os Moinhos Juntos, ao fundo. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 Fig. 2 - Fábrica Miranda, vista do Bairro do Castelo. Cerca de 1940. Foto in Áurea Paes Falcão. Pequena Monografia do Concelho de Odemira, 1943, p. 25, inédita (na biblioteca de Raul Almeida).

 Fig. 3 - Fábrica Miranda, com trabalhadores. Década de 1930. Cedida por Dr. João Batista Brás.

 Fig. 4 - Fachada posterior, actualmente. Foto AMQ.

 Fig. 5 - Fachada principal, actualmente. Foto AMQ.

 Fig. 6 - Fachada principal. Corpo do lado de nascente. Foto AMQ.

 Fig. 7 - Interior. Equipamento industrial. Foto AMQ.

Edifício da Câmara Municipal

Localização:37°35'46.95"N; 8°38'30.97"W. Praça da República, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: 1865

Descrição: A segunda metade do século XIX foi, na vila de Odemira, marcante em termos urbanísticos e arquitectónicos. Como edifício de referência, construído em 1865, é de realçar o da Câmara Municipal, onde funcionavam também outros serviços, como os da justiça, entre eles a prisão. Edificado sobre o antigo edifício municipal, que abria para o núcleo urbano medieval do Castelo, e mais algumas pequenas casas anexas, o novo edifício virou-se, dir-se-ia simbolicamente, para o exterior do Castelo, para onde continuou a abrir uma porta lateral.

A sua dimensão e sua arquitectura rivalizavam com as igrejas da vila, o que veio conferir ao plano da administração civil uma nova imagem a condizer com um Estado que se queria forte, superando a justaposição de poderes do Antigo Regime.

A fachada principal voltada a sueste, para a Praça da República, ostenta arquitectura erudita, ecléctica, que mescla características estilísticas da tradição barroca, do neoclassicismo e do revivalismo neogótico. Apresenta três panos, definidos por pilastras encimadas por urnas, e três pisos, separados por friso de argamassa, rematados superiormente por cornija e balaustrada, com frontão triangular no coroamento do pano central, onde se inscreve medalhão com as armas do município, envolvido por grinalda, e sobrepujado por composição de volutas.

Ao nível do piso térreo rasgam-se, em cada um dos panos laterais, três janelas com verga curva e moldura em cantaria; no pano central abre-se o portal principal, em arco de volta perfeita com moldura de cantaria e chave saliente, com a inscrição «C. M. / 1865», e frontão triangular assente em secções de pilastras estriadas.

No primeiro piso tem, em cada um dos panos laterais, três janelas de sacada, de verga curva, com molduras e mísulas de cantaria e grades de ferro forjado nos dois vãos dos extremos e de ferro fundido no vão central; entre o segundo e o terceiro vãos, a contar dos lados, um óculo, sendo o da esquerda cego; no pano central rasga-se janela em arco de volta perfeita com moldura de cantaria e pequeno gradeamento de protecção.

Quanto ao segundo andar tem, em cada dos panos laterais, duas janelas de sacada, de verga recta, com moldura e mísula de cantaria com gradeamento em ferro fundido; ao centro de cada pano abre-se janela com verga recta e moldura de cantaria, óculos com colocação idêntica ao do primeiro piso; no pano central rasga-se janela de sacada em arco de volta perfeita com moldura de cantaria, gradeada de ferro fundido.

Lateralmente e atrás, eleva-se a torre do relógio, com molduração de argamassa, frontões triangulares, em dois dos quais se inscrevem mostradores do relógio, ladeados por platibanda com urnas cerâmicas nos ângulos, cobertura em coruchéu cónico rematada por estrutura em ferro fundido com tecto hexagonal e sineta. No piso superior, pequena abertura de verga curva com moldura de cantaria, e no inferior janela com moldura de cantaria.

O interior, complexo, sofreu obras de adaptação e ampliação na última década do século XX, que permitiram descobrir anterior organização espacial, em função dos usos que lhe foram pedidos.

Nas proximidades, surgiram no mesmo século XIX edifícios particulares de arquitectura vernácula, mas frequentemente com elementos clássicos (frontão) e barrocos (vergas mistilíneas), cuja tradição se manteve demoradamente.

Bibliografia sucinta: QUARESMA, A. M. (2014) - O Rio Mira no Sistema Portuário do Litoral Alentejano (1851-1918). Lisboa: Âncora Editora.

Webgrafia: FALCÃO, J. A. &PEREIRA, R. E. (1996) - Paços do Concelho. URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4345 (acedido em 12 de Junho de 2014).

 

Fig. 1 - Fachada do edifício da Câmara, no início do século XX. Foto cedida por João Barros e Silva.

 Fig. 2 - Torre do relógio, no início do século XX. Foto cedida por João Barros e Silva.

 Fig. 3 - Sala das sessões, no início do século XX. Foto cedida por João Barros e Silva.

 Fig. 4 - Desenho de projecto de reedificação da torre do relógio (1901). Arquivo Histórico Municipal de Odemira, AO 2-18.

 Fig. 5 - Fachada do edifício da Câmara, actualmente. Foto AMQ.

 Fig. 6 - Fachada, parcial. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 7 - Frontão superior. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 8 - Armas, no interior do frontão. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 9 - Óculos cegos. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 10 - Torre do relógio, actualmente. Foto AMQ.

Casa particular

Localização: 37°35'46.32"N; 8°38'30.13"W. Rua Alexandre Herculano, n.º 1, Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: Século XIX

Descrição: Edifício de dois pisos, com a fachada principal voltada para a Rua Alexandre Herculano, n.º 1, e laterais para a Praça da República e Largo José Maria Brito Pais, edificado na parte central da vila de Odemira (freguesia de Santa Maria). Trata-se de uma moradia, pertencente a uma família da aristocracia local (Lopes Falcão), cuja arquitectura revela a continuidade de modelos vernaculares, bem arreigados na tradição construtiva regional, embora com influência da arquitectura erudita. Na composição geral predomina a austeridade e a regularidade na distribuição dos vãos.

A fachada principal é de um só pano, caiado de branco, delimitado por cunhais de argamassa caiados de cinzento, assente em base de argamassa da mesma cor, e rematado superiormente por entablamento, caiado de branco, e beirado, dividido em dois registos por moldura de argamassa caiada de cinzento, que se sobrepõe aos cunhais.

Ao nível do rés-do-chão, é rasgada por quatro janelas e, ao centro, pelo portal, emoldurados de cantaria, tendo o portal verga curva com chave saliente. No primeiro andar, abrem-se cinco janelas de sacada, com molduras de cantaria, cujas varandas, com bases de cantaria e grades de ferro, são suportadas por mísulas também de cantaria. A verga da janela central apresenta recorte mistilíneo, com chave saliente, com uma estrela gravada. Estas vergas curvas, ao gosto tardo-barroco, são contudo datadas já do século XIX, como o resto do edifício.

Na parte superior, sobre o beirado, eleva-se um mirante, com varanda de ferro forjado, de um só pano definido por cunhais caiados de cinzento e rematado superiormente por frontão triangular acompanhado por beirado. Rasga-o uma janela de sacada com moldura de cantaria encimada por três pequenas pilastras de argamassa que “suportam” o frontão. A influência neoclássica é patente neste mirante rematado por frontão triangular assente em cunhais apilastrados.

As fachadas laterais são do mesmo tipo, mas mais simples e austeras, sem varandas, nem vergas curvas.

No interior, de destacar o átrio, onde se penetra pelo portal principal. De planta rectangular, é coberto por tecto plano de madeira; o pavimento é revestido de seixos rolados pretos e brancos, com desenhos, formando uma quadrícula com diagonais, em volta de uma círculo central onde sobressai uma estrela de seis pontas. Nas paredes laterais abrem-se duas portas de cada lado, emolduradas de cantaria; ao fundo a escadaria principal, a que se acede por arco de asa de cesto com moldura de cantaria de chave saliente assente em pilastras, encimado pela inscrição " ANNO de 1840 " pintada na sanca, ladeado por poiais. A escadaria, com degraus de cantaria, tem um primeiro lanço de três degraus, patamar e dois lanços divergentes resguardados por gradeamentos de ferro forjado.

O edifício, presentemente à venda, encontra-se apenas parcialmente ocupado, mas começa a verificar-se degradação, que os proprietários não têm possibilidade de deter.

Webgrafia:PEREIRA, R. (2001) - Casa na Rua Alexandre Herculano, n.º 1. URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=16770 (acedido em 2 de Fevereiro de 2014).

 

Fig. 1 - Casa da Rua Alexandre Herculano, n.º 1. Aspecto geral. Foto AMQ.

 Fig. 2 - Pormenor do portal principal e janela de sacada central. Foto AMQ.

 Fig. 3 - Pormenor do piso superior, com o mirante. Foto AMQ.

 Fig. 4 - Mirante. Foto AMQ.

 Fig. 5 - Interior. Átrio. Foto Jorge Vilhena.

 Fig. 6 - Átrio. Data pintada na sanca. Foto Jorge Vilhena.

Ponte de Odemira

Localização: 37°35'45.78"N; 8°38'36.85"W.Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: 1891

Descrição: A segunda metade do século XIX conheceu em Portugal uma política activa de melhoria das redes de transportes, nomeadamente da rodoviária. A travessia do rio Mira, em Odemira, fazia parte duma estrada distrital que ligava com o Algarve (Lagos), e foi devido a essa classificação e ao interesse da Direcção Distrital das Obras Públicas que surgiu a decisão de construção da ponte.

A obra, a realizar no sítio da passagem em barca, foi aprovada em 1885, por portaria de 15 de Novembro. Em 27 de Julho de 1888, foi aberto concurso para arrematação e adjudicação, sendo entregue à Empresa Industrial Portuguesa, de Santo Amaro, em Lisboa, uma das principais empresas de metalomecânica do País, criada por um grupo de capitalistas, liderado pelo Conde de Burnay, que, pela mesma altura, construiu outras pontes de ferro em Portugal. Em fins de Março de 1891, a ponte foi entregue pela empresa construtora; aberta inicialmente aos peões e, pouco depois, ao restante trânsito, com a nota de que ficaria iluminada com seis candeeiros, a acender em noites sem luar.

Compunha-se de duas partes distintas: a ponte propriamente dita, sobre o rio, e um “viaduto”, na margem esquerda, sobre a várzea, fazendo a ligação à parte mais elevada do terreno marginal. A ponte tinha um só tramo, com vão de 40 metros entre as alvenarias dos estribos e uma largura de seis metros; o viaduto, de 90 metros de abertura entre as alvenarias dos estribos, era dividido em seis tramos independentes, com pilares metálicos. Contraventos, em “cruzes de Santo André”, davam-lhe consistência, vertical e horizontal. A altura foi calculada pelo nível da máxima cheia recordada (a do ano de 1878).

Peões, cavaleiros e cavalgaduras de carga passaram a ser, tal como na barca, os seus utilizadores. As carretas, que, dos lados de Monchique, Sabóia e São Teotónio, vinham a Odemira com mercadorias para embarque no Porto do Peguinho, continuavam a passar no vau de Porto de Molho, apesar de condicionantes como as cheias do rio, porque as ligações à ponte não serviam esse trânsito.

Entre 1935 e 1941, a ponte foi reconstruída, pois considerava-se que não oferecia segurança: estava-se em plena expansão do transporte automóvel e havia que dotar as travessias de rios com pontes e com novas pontes mais resistentes. Pela mesma altura foram construídas mais duas, na ribeira do Sol-Posto (Torgal) e na ribeira de Odeceixe, na Estrada Nacional 120 (Plano Rodoviário de 1945), entre Alcácer do Sal e Lagos, que passava pela vila de Odemira. O projecto foi da responsabilidade do Eng. Barbosa Carmona, ficando a empreitada a cargo da Fábrica Vulcano & Colares. Aproveitou-se parte da alvenaria da ponte primitiva (pilares) e do material não utilizado pela Direcção-Geral dos Caminhos e Ferro; o material retirado também foi encaminhado para outras obras. Na altura, foi construída uma ponte de madeira provisória para permitir a continuação da passagem, que acabaria por ser levada por uma cheia.

A nova ponte, com tabuleiro para trânsito automóvel, tinha lateralmente varandins para circulação de peões.Os quatro tramos do tabuleiro passaram a ser apoiados em mais alguns pilares de alvenaria e por arcos metálicos treliçados superiores. Em 2011, tendo em conta certa degradação de alguns dos seus elementos, foi realizada uma campanha de obras de reabilitação e reforço.

Bibliografia sucinta: (2010) - As Pontes de Odemira, Odemira em Notícia. Boletim Municipal, 2, Maio/Junho, Odemira: Câmara Municipal de Odemira p. 2-3; QUARESMA, A. M.(2014) - O Rio Mira no Sistema Portuário do Litoral Alentejano (1851-1918). Lisboa: Âncora Editora.

Webgrafia:GORDALINA, R. (2012) - Ponte sobre o rio Mira. URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=16771 (acedido em 3 de Março de 2014).

 

Fig. 1 - Ponte primitiva. Início do século XX. Postal ilustrado: Cliché Azevedo.

 Fig. 2 - Ponte primitiva. Início do século XX. Postal ilustrado: Cliché Azevedo.

 Fig. 3 - Reconstrução, entre 1936-1941. Postal ilustrado: Edição Silva Júnior.

 Fig. 4 - Ponte após a reconstrução. Postal ilustrado: Cliché de P.A. Edição de A Camponesa, Odemira.

 Fig. 5 - Ponte sobre a ribeira do Sol-Posto, em conclusão (1936). Foto in Áurea Paes Falcão. Pequena Monografia de Odemira, 1943, p. 3, inédita (na biblioteca de Raul Almeida).

 Fig. 6 - Ponte sobre o Mira, actualmente. Foto Câmara Municipal de Odemira/Luís Guerreiro.

 Fig. 7 - Ponte sobre o Mira, actualmente. Foto CMO/Luís Guerreiro.

Padrões da barca

Localização: 37°35'44.88"N, 8°38'38.89"W e 37°35'44.96"N; 8°38'35.69"W. Odemira (C.M.P. nº 553).

Cronologia: Séc. XVII

Descrição: Os padrões ou marcos da barca, erguidos nas margens do rio Mira, imediatamente a montante da ponte de Odemira, serviram ao longo de séculos para a fixação dos cabos que prendiam e ajudavam a locomoção da barca da passagem do rio, cuja particular forma, a modo de um estrado rectangular de madeira, e deslocação sempre suscitaram curiosidade. Antes da construção destes marcos de alvenaria, os cabos firmaram-se em árvores e em espeques de madeira. Um grosso cabo, a “maroma”, que atravessava o rio, mantinha a barca no lugar e evitava que fosse arrastada pela corrente de marés e de cheias; dois outros cabos mais finos permitiam que fosse puxada para uma e outra margem, de dentro dela ou da margem. O marco da margem esquerda foi, a certa altura, dotado de um “sarilho” que permitia aliviar a tensão da “maroma”, sempre que algum barco à vela pretendia navegar para montante.

Desconhece-se a data precisa da fundação da barca, aventando-se a hipótese de ter sido na segunda metade do século XV, ou mesmo já na primeira do século XVI, mas não se põe de parte cronologia mais antiga. Persistentemente transmitida pela documentação arquivística e pela lição oral, tradição antiga afirmava que a barca da passagem do Mira foi instituída por uma mulher piedosa que deixou, para o efeito, certo número de bens, cuja renda era aplicada no seu funcionamento e na sua manutenção. Em troca, os passantes deveriam rezar um Padre-Nosso e uma Ave-Maria por alma da instituidora, contrato que assegurava a intercessão dos vivos na salvação da sua alma depois da morte. Legado pio, portanto, a instituição da Albergaria da Barca inscreve-se no ambiente religioso da época da sua criação, em particular a crença no Purgatório, e contém a noção vigente das dificuldades e dos riscos da travessia dos rios. Da administração deste património se encarregou a Câmara, possivelmente desde o seu início.

Os marcos, com algumas diferenças, têm ambos planta rectangular e possuem cobertura de duas águas sem telhado. A sua frontaria é de um só pano, enquadrado por barras pintadas, com arco central de volta perfeita. Rematam em frontão triangular com cruz no acrotério central e urnas nos acrotérios laterais, em argamassa. O padrão da margem esquerda tem encastrado, no frontão, uma lápide com a seguinte inscrição: HV[M] P[ADRE] N[OSSO] HV[M]A AV[E] MA[RIA] PELA ALMA DE / QVEM DEIXOV ESTA BARCA / MANDOU FAZER ESTE PADRA/O O D[OU]TOR JOAO DA ROCHA PINTO / P[ROVE]DOR DA COMARCA DA CIDADE / DE BEJA DE 1672. Deste marco, temos uma representação do século XIX, constante de uma vista da vila de Odemira, assinada por Henrique Pousão, publicada pela revista O Occidente, III, 65, Lisboa, 1 de Setembro de 1880, p. 1.

Elementos civis que pertencem, simultaneamente, à arquitectura de transportes e à arquitectura comemorativa, os dois padrões são, contudo, exemplo pouco comum. Na realidade, evocam, tanto pela génese como pela forma, o culto religioso. Os seus modelos derivam da popularização de soluções patentes na arquitectura das igrejas do barroco tardio, o que não deixaria de constituir um incentivo à oração. Aliás, muitas pessoas, ignorando a utilidade primordial que tiveram, chamam-lhes “capelinhas”. Hoje memorizam a antiga existência da barca da travessia do rio e da Albergaria da Barca, instituição que a administrava, cuja importância local, a vários títulos, a documentação histórica destaca.

Bibliografia sucinta:QUARESMA, A. M. (1993) - A Barca de Odemira. Odemira: Município de Odemira; RODRIGUES, A. (s/d.) - Henrique Pousão. Lisboa: Edições INAPA.

Webgrafia: FALCÃO, J. A. &PEREIRA, R. E. (1996) - Padrões da Barca de Passagem do Rio Mira. URL: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=5698 (acedido em 1 de Março de 2014);

 

Fig. 1 - Barca de Odemira, por Henrique Pousão (1880). In O Occidente, III, 65, Lisboa, 1 de Setembro de 1880, p. 1.

 Fig. 2 - Padrão da margem esquerda. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 Fig. 3 - Padrão da margem direita. Foto CMO/Luís Guerreiro.

 Fig. 4 - Inscrição epigráfica no frontão do padrão da margem direita (1672). Foto AMQ.

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