Concheiro de Fiais

Freguesia/Concelho: Boavista dos Pinheiros (Odemira)

Localização: 37º35’00’’N; 8º40’16,8’’W (C.M.P. 1:25.000, Folha 561)

Cronologia: Mesolítico

O vasto concheiro (4000 m2)de Fiais, no Monte das Lágrimas (Boavista do Pinheiros), foi um acampamento de antigos caçadores mesolíticos, próximo do rebordo da planície litoral sobre o vale do Mira, 2 km a oeste de Odemira e do fundo do estuário, e a 10 km em linha recta do mar (Fig.1). O local foi ocupado entre 6156 e 5336 cal BC; tratar-se-ia de um acampamento-base de comunidade de caçadores-recolectores que exploraria o território do baixo vale do Mira, de acordo com a sazonalidade dos recursos.

O local, na margem esquerda de um pequeno ribeiro (Corgo de Fiais), não se destaca na planície arenosa, levemente ondulada (Figs. 3, 4, 5). Nas proximidades localiza-se a Fonte das Asmas.

Antes da alteração do local por agricultura intensiva de regadio e estufas ali instaladas no finais dos anos noventa (Figs. 6 e 7), foram realizadas escavações arqueológicas no sítio em meados da década de 1980, por uma equipa luso-americana (Fig. 8). Estas pesquisas permitiram distinguir áreas funcionais dentro do antigo acampamento. Numa delas, identificaram-se lareiras e empedrados, provavelmente de fundos de cabanas ou abrigos pára-vento, que seriam edificados com materiais perecíveis (ramagens, peles) (Fig. 9). Noutra área do concheiro, encontrou-se sobre um nível de conchas concrecionadas e cinzas, a zona de esquartejamento, assadura e consumo de peças de caça maior, de que se identificaram milhares de ossos de animais, alguns ainda em conexão anatómica (Figs. 10 e 11). Entre as espécies de grandes vertebrados ali identificadas, todas selvagens, maioritariamente machos e abatidos antes da maturidade (selecção de presas que indicia uma estratégia de caça com o cuidado de não comprometer a reprodução das espécies), predominam os cervídeos: veado (55%) e corço (4%), seguidos de javali (9%) e do auroque (6%). Registaram-se ainda no local restos de coelho (17%), lebre (<1%), raposa (<1%), gato silvestre/lince (<1%) e ossos isolados de texugo e cão. Foram igualmente identificadas conchas de espécies estuarinas e marinhas: lapa, mexilhão, caramujo, púrpura, berbigão, lamejinha, ostra, amêijoa, lingueirão/navalha, assim como vértebras de peixe.

Os utensílios líticos encontrados em Fiais, utilizados na caça e pesca, no processamento das presas (corte, esfolamento, descarnação, etc.) e em outras funções (por exemplo, na preparação de vestuário) são típicos do período Mesolítico: micrólitos geométricos e lamelas de chert (90%), sílex, cristal de quartzo, quartzito e quartzo, e lascas e raspadores grosseiros de grauvaque e quartzito. Encontraram-se igualmente contas de colar, fabricadas a partir de conchas.

Na escavação foram recolhidos ossos humanos, o que indica a presença de enterramentos, tal como verificado em outros concheiros do litoral sudoeste e nos vales do Sado e Tejo. A primeira referência à existência de enterramentos no local ocorreu durante a construção do Monte das Lágrimas. Infelizmente, nos últimos anos, este edifício foi ampliado sem acompanhamento arqueológico.

Na última década, parte da área do sítio mesolítico de Fiais foi ocupada por agricultura intensiva de regadio, e a orla sul com estufas (Figs. 12 e 13). Tal tem destruído a jazida de forma irreparável, devido à implantação de estruturas, ao profundo revolver e alterações físico-químicas provocadas no subsolo, uma vez que as camadas com restos biológicos de grande antiguidade e valia científica se encontram apenas a 40 cm de profundidade.

Bibliografia:

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ARNAUD, J. M. (1993) - O Mesolítico e a neolitização. In O Quaternário em Portugal. Balanços e perspectivas. Lisboa: Colibri / Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário, p. 173-184.

ARNAUD, J. M. (1994) - Síntese da Arqueologia em Portugal. In C. SCARRE, Atlas de Arqueologia. Lisboa: Edições Zairol, p. 292-300.

ARNAUD, J. M. (2000) - O Mesolítico e o processo de neolitização: passado, presente, futuro. In Arqueologia 2000. Balanço de um século de investigação arqueológica em Portugal (Arqueologia e História, 54). Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, p. 57-78.

LUBELL, D.; JACKES, M.; SHEPPARD, P. & ROWLEY-CONWY, P.(2007) - The Mesolithic–Neolithic inthe Alentejo: archaeological investigations,1984-1986. In From theMediterranean basin to the PortugueseAtlantic shore: papers in honor of Anthony Marks. Actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular (Faro, 14 a 19 de Setembro de 2004) (Promontoria Monografica, 7). Faro: Universidade do Algarve, p.209-230.

SOARES, J. & TAVARES DA SILVA, C. (2004) - Alterações ambientais e povoamento na transição Mesolítico-Neolítico na Costa Sudoeste. In A. A. TAVARES, M. J. FERRO TAVARES & J. L. CARDOSO (eds.), Evolução Geohistórica do Litoral Português e Fenómenos Correlativos. Lisboa: Universidade Aberta.

Jorge Vilhena

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Fig. 1 – Foto aérea da área do concheiro de Fiais (1999, arquivo Câmara Municipal de Odemira), vista de leste.

Fig. 2 – Perspectiva geral da área do concheiro de Fiais, a norte do campo de pastagem adjacente à E.N.120. Estado actual, vista de sueste.

Fig. 3 – Perspectiva geral da área do concheiro de Fiais, margem direita do Corgo de Fiais . Vista de sueste (fotomontagem).

Fig. 4 – Perspectiva geral da área do concheiro de Fiais, da margem direita do Corgo de Fiais. Vista de leste (fotomontagem).

Fig. 5 – Parte setentrional do concheiro de Fiais, vista de sul. A jazida encontra-se à esquerda do Corgo de Fiais (ao centro e à esquerda na imagem).

Fig. 6 - Parte meridional do concheiro de Fiais. Vista panorâmica para sul e oeste (fotomontagem).

Fig. 7 - Concheiro de Fiais. Vista panorâmica para sul e leste, tomada de noroeste (fotomontagem).

Fig. 8 – Aspecto geral sítio de Fiais, durante a escavação arqueológica na década de 1980 (in Arnaud, 1994: 295).

Fig. 9 – Orifício de poste estruturado encontrado na escavação arqueológica da década de 1980 no concheiro mesolítico de Fiais (in Arnaud, 1994: 295).

Fig. 10 - Escavação arqueológica no concheiro de Fiais, 1986. De notar o nível, pouco profundo, com restos osteológicos excepcionalmente bem conservados, onde se identificam hastes de cervídeos. Foto: Arquivo Câmara Municipal de Odemira.

Fig. 11 – Desenho do plano da Fig. 10. Escavação de 1986 (in Arnaud, 1994: 295 e Lubell et al., 2007: Fig. 5).

Fig. 12 – Aspecto actual do interior das estufas de agricultura intensiva e de construção (ao fundo na imagem) sobre a zona meridional da jazida mesolítica de Fiais.

Fig. 13 – Orla sul da jazida mesolítica de Fiais, actualmente ocupada por agricultura intensiva de regadio. A carga de estruturas, revolvimento do solo e alterações químicas provocadas pelo uso de fertilizantes, herbicidas e pesticidas inviabilizam a conservação dos importantes restos bioarqueológicos com oito mil anos de história.