Estrutura portuária e tanque rupestre da Ponte do Rio Mira

Freguesia/Concelho:Vila Nova de Milfontes (Odemira)

Localização: 37°43'42,70"N; 8°46'10,4"W (tanque rupestre) (C.M.P. 1:25.000, Folha 544)

Cronologia: Período Romano

Em 1978, as terraplenagens realizadas para a construção do encosto e acesso norte da ponte rodoviária de Vila Nova de Milfontes, lançada a menos de dois quilómetros da barra sob o estuário do Mira, destruíram grande parte do sítio do período romano que ali existia.

Em inícios, e depois em meados, da década seguinte, quando foram feitos os primeiros reconhecimentos arqueológicos modernos da área, assinalou-se finalmente a presença de vestígios de uma estrutura de época romana, a que foi atribuída funcionalidade portuária. As terras remexidas pela acção da maquinaria da obra continham restos de muros e pavimentos romanos de opus caementicium (argamassa de cal, areia e pedra miúda irregular) e de opus signinum (argamassa impermeável feita de cal, areia e restos de cerâmica triturados) que indiciam de facto construção preparada para o contacto permanente com a água.

Trata-se, pois, de uma possível estrutura portuária antiga ou, pelo menos, de um estabelecimento ribeirinho, que se desenvolvia desde a margem do rio pela vertente acima até ao rebordo da planície sobre o vale.

Actualmente, a visibilidade desses restos é reduzida, quer pelo escorrimento de terras dos taludes artificiais recentes, quer pela acção erosiva das marés, na margem do rio. A piorar a situação, o sítio tem sido muito pilhado pelos caçadores de metais (moedas, pregos, etc.) feitas nas terras remexidas pela obra de há trinta e cinco anos.

A construção dos pilares da ponte, em particular o mais setentrional, alteram a dinâmica da corrente do rio, com consequente alteração do fundo, tendo sido mobilizados artefactos há muito depositados no leito. Entre estes, conta-se uma ânfora de modelo Keay XVI, para produtos piscícolas, produzida no sul da Lusitânia (foz do Sado ou Algarve) entre finais do séc. II e o século IV d.C. Trabalhos arqueológicos recentes documentaram a presença de possíveis muros romanos submersos, que durante a Antiguidade, quando o nível do mar foi um pouco inferior ao actual, poderiam estar à borda de água.

Em terra, não é já muito comum encontrar artefactos arqueológicos, mas vêem-se ainda cerâmicas comuns e importadas, que indicam que o local foi ocupado nos séculos I a III e durante a fase final do Império romano, até mesmo aos alvores da Idade Média.

Aproximadamente a cem metros para leste, existe um afloramento rochoso na margem, a cota intertidal, que é, portanto, inteiramente coberto pela água com a maré alta. Nesse afloramento, é visível um tanque de forma rectangular com dimensões de 1,3 x 0,7 m, profundamente talhado na rocha. Quase completamente colmatado por sedimentos, tem um pequeno canal de vazamento para o rio no canto sudeste, igualmente talhado no xisto.

Desde a sua identificação, em 1995, têm sido aventadas várias hipóteses para a sua funcionalidade: cetária para salga de peixe, recipiente para fabrico de sal, lagar ou lagareta de azeite, sepultura rupestre... Todas as possíveis interpretações esbarram na contiguidade à margem rio, que submerge o completamente a rocha na preia-mar. Mesmo que se considere as flutuações do nível do mar, que era possivelmente um pouco mais baixo na Antiguidade, a proximidade da água inviabiliza a maioria das hipóteses antes consideradas. A mais plausível é a que aponta para um lacus, com propósitos cultuais. Nele, poderiam ter sido celebradas libações com utilização de líquidos, possivelmente água salgada do rio, no âmbito das cerimónias, comuns a todo o Ocidente Peninsular, entroncadas nos cultos indígenas pré-romanos, adoptados e assimilados pelo sincretismo religioso do período romano. Desde o século I, aportaram também à Lusitânia, sobretudo nos meios ligados ao comércio a distância, diversas religiões orientais, que se generalizaram nos séculos II e III. A Cíbele, Serápis, Mitra faziam-se cultos mistéricos cujos ritos se podiam realizar em tanques deste tipo, com cerimónias de imersão dos crentes para iniciação e expiação. A reforçar a suposição de que este tanque foi uma estrutura de carácter religioso, no mesmo afloramento existem duas pequenas concavidades de contorno circular talhadas na rocha. Este tipo de covinhas insculpidas é muito frequente junto de petróglífos e em afloramentos de todo o ocidente peninsular desde a Pré-história, sendo unanimemente reconhecida a sua conotação com a esfera religiosa e do simbólico.

Atenda-se à recente identificação de vários tanques rupestres de tipologia similar na região de Odemira, que se julgam ter sido elaborados para funções religiosas ou cultuais, e cujas cronologias parecem variar entre o final da Idade do Ferro e a Alta Idade Média (Maceirinha, Arcaçoila, Castelo da Senhora das Neves).

Bibliografia:

(1982-3) – Informação Arqueológica, 5 Lisboa: Instituto Português do Património Cultural.

QUARESMA, A. M.(2003) – Vila Nova de Milfontes. História. Vila Nova de Milfontes: Junta de Freguesia.

VILHENA, J. (2012) – Milfontes, uma história feita em cacos (“maravilhas de Portugal”). FO Magazine, 7. Odemira, p. 26-29.

VILHENA, J. (2014) – Acupunctura em Odemira: dois séculos de Arqueologia. In P. PRISTA (coord.), Ignorância e Esquecimento em Odemira. Odemira: Município de Odemira.

VILHENA, J. & RODRIGUES, J. (2010) – A rocha insculpida de Maceirinha (Odemira). In Actas do 2.º Encontro de História do Alentejo Litoral. Sines: Centro Cultural Emmerico Nunes, p. 52-64.

Jorge Vilhena

 

Fig. 1 – Vista geral do sítio romano da Ponte de Milfontes. Lista de 2011.

Fig. 2 – Tanque rupestre da Ponte de Milfontes. Vista de norte.

Fig. 3 - Tanque rupestre da Ponte de Milfontes, na margem do Mira. Vista de oeste.

Fig. 4 – Tanque rupestre da Ponte de Milfontes.

Fig. 5 – Tanque rupestre da Ponte de Milfontes.