Arqueologia de período romano no concelho de Odemira

Jorge Vilhena

A arqueologia do período romano no território de Odemira coloca um paradoxo interessante. Por um lado, este é um do concelhos do Alentejo onde as referências a descobertas e estudos de antiguidades clássicas são mais antigas, remontando ao século XVIII: um começo auspicioso. Por outra parte, em nenhuma outra área do sul do país de dimensão similar à vastidão do concelho de Odemira (1720 km2) se têm, actualmente, tão poucas evidências da ocupação de época romana, período que compreende os seiscentos anos decorridos entre o ano 150 antes da nossa era, aproximadamente, e o século V depois de Cristo.

Comecemos pelo princípio. Em 1770, dom frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas foi nomeado primeiro bispo da reconstituída diocese de Beja. O prelado era um intelectual lisboeta, educado e imbuído do espírito do Classicismo, que consequentemente valorizava o estudo e colecção de antiguidades greco-romanas. Uma vez instalado em Beja, Cenáculo procurou fazer o primeiro reconhecimento das antiguidades do território da sua diocese, no que constitui um precedente científico na arqueologia portuguesa. O seu propósito era, de um lado, altruísta, pois tratava-se de constituir e engrandecer as colecções de naturalia e artificialia (as coisas criadas pela natureza e pela mão humana) do «sacro-profano» Museu Sisenando Cenáculo Pacense – o primeiro museu público do país – que Villas-Boas viria a abrir em Beja no ano de 1791. Nessa casa, à imagem das bibliotecas que também fundou, pretendia elevar a vida cultural da população e, com isso, promover o que então se chamava de «felicidade pública». É que o bispo Cenáculo não era já um homem do anterior tempo da mera contemplação estética e comentário ocioso da arte e da cultura greco-clássica, antes defendia a recuperação útil das ideias de racionalismo e valores cívicos da Antiguidade. Por outro lado, Cenáculo desenvolvia um interesse próprio, já denunciado pelo nome por si dado ao museu pacense (S. Sisenando, mártir natural de Beja e que defendeu a fé cristã contra a invasão muçulmana do séc. VIII, simboliza o triunfo da ciência e da civilização católica sobre a barbárie). O museu de Beja, e as suas peças, serviriam, consequentemente, assim para a instrução religiosa dos leigos, e a pesquisa e recolha de antiguidades pré-cristãs (romanas e pré-romanas orientais consideradas do tempo dos «antigos Judeus» do Velho Testamento) serviriam para exemplificar, como uma espécie de provas triunfais, a longa história da implantação do cristianismo nesta comarca, que, segundo as próprias palavras do bispo, era uma «extraordinária Fundação das Igrejas litorais[...] contra os povos Turdetanos, Cinetes, e Celtas» (Vilas-Boas, 1800; Vilhena, 2014; Fabião, 2011; Patrocínio, 2006; Delgado, 1946-1949: 427). Clérigo de alto cargo, Cenáculo era um bispo também preocupado em corrigir os brandos costumes religiosos (ou a sua falta) das comunidades rurais da diocese que, ante a passividade geral dos retrógrados sacerdotes paroquianos, eram, no mínimo, pouco ortodoxos (Quaresma & Falcão, n.p.).

Manifestava o nosso prelado, portanto, avidez pela identificação de vestígios pagãos e paleocristãos e pela recolha de todos os ídolos zoomorfos, teomorfos e antropomorfos que pudesse obter. Cenáculo tinha também uma particular predilecção pelo litoral e por Sines, onde mandou pesquisar pelos vestígios da desaparecida igreja de Santa Celerina que, segundo a lenda, teria sido o maior templo cristão da Antiguidade e local de sepulcro de S. Torpes no séc. I, sagradas relíquias que já em 1591 o papa Xisto V mandara procurar. Nessa demanda, Cenáculo encontrou e fez escavar em S. Torpes ruínas de edifícios e diversas sepulturas, assim como incitou o pároco de Santiago do Cacém a proceder a investigações nas ruínas da cidade romana de Miróbriga onde, dois séculos antes, o humanista André de Resende achara uma estátua que se pensava ser do deus romano Vulcano (Vilas-Boas, 1800; Delgado, 1946-1949; Fabião, 2011; Vilhena, 2014).

Cenáculo instigou muitos dos párocos que lhe eram mais dedicados à pesquisa por antiguidades sagradas na suas respectivas paróquias. Estes eram homens de melhor formação, como os casos de dois dos padres colocados na problemática aldeia de S. Teotónio, em Odemira: Joaquim Contreiras, que futuramente iria procurar no vale superior do Mira pelas famosas lápides da escrita pré-latina do Sudoeste que Cenáculo publicou, e José Gaspar Simões, autor de um notável texto sobre dólmenes da região da Guarda e que foi o primeiro a realizar escavação arqueológica de tais monumentos pré-históricos, na época considerados altares pagãos ou dos antigos hebreus (Fabião, 1989; id., 2011; Quaresma & Falcão, n.p.). Foi também este último padre que recolheu e transmitiu a Cenáculo o primeiro artefacto tido como romano encontrado em Odemira, na zona do cabo Sardão (Fig. 1), de que se tem notícia. Eis como Cenáculo descreveu o achado (o desenho perdeu-se) em Sisenando Martir Beja Sua Pátria, obra manuscrita de 1800 (Vilas-Boas, 1800; Delgado, 1946-1949; Vilhena, 2014) (Fig. 2):

Outro Hércules achado na Freguesia de S. Teotónio junto ao mar e Cabo Sardão neste ocidente Litoral vizinho do Promontório Sacro confirma o seu culto neste território. É de barro fino preto e duro na figura de menino assentado sobre a enrolada pele das serpentes que lhe arremessou Juno para o devorar no berço: ele as matou, e em cima do destroço está zombando; pois de entre as perninhas saem as pontas da farpada pele da cabeça despedaçada. O menino está rindo para ela com prazer à maneira da complacência com que Hesíodo, ou quem é o Escritor do Escudo de Hércules v.155 descreve este Herói delicioso pelo convite de combater com o Filho de Marte: Arrisit autem fortis Hércules animo delectatus. Aqueles antigos quiseram mostrar que assim como Hércules nas mantilhas já zombava de serpentes furiosas, assim mataria neste Oceano os bois ferozes de Gerião vizinho deste território, os quais foram outro dos seus trabalhos.

A estatueta que, aparentemente, seria de um tipo de que não se conhece outro exemplar de época romana, seria alusiva a um tema consabido da mitologia clássica e muito representado na Antiguidade. Na sua interpretação, Cenáculo concebia ver traços da cultura greco-romana – receptáculo e difusor do cristianismo de Roma – no ocidente atlântico onde se situava a sua diocese, próximo do palco de um dos doze trabalho de Hércules, Tartessos (Figs. 3 e 4).

Pela mesma altura, Cenáculo conduziu pessoalmente a primeira escavação arqueológica realizada na região do baixo Mira, na Herdade do Raco, junto da partilha da freguesia de Cercal (Santiago Cacém) com a de S. Luís (Odemira), em local que o bispo apenas precisou estar a «duas léguas da Foz e Porto de Villa-nova-de-milfontes». Tratava-se de uma vasta necrópole junto de uma fonte, onde os escavadores encontraram, em dez sepulturas feitas de lajes de xisto, restos osteológicos e grande cópia de artefactos antigos: recipientes cerâmicos grosseiros e outros pintados com padrões lineares e circulares, objectos de ferro, vasos de vidro, uma fina gargantilha de ouro com apliques de pasta vítrea avermelhada, um anel no mesmo metal e com inscrição imperceptível, moedas, muito provavelmente romanas, e um bracelete de bronze, com extremidades serpentiformes (Fig. 5). Cenáculo considerou as peças (e assim as sepulturas) de cronologia pré-romana, com proveniência fenícia ou egípcia, ou mesmo de origem autóctone. Posteriores revisões de investigadores do final do século XIX e do século XX da descrição deixada por Cenáculo (as peças perderam-se) apontam para uma cronologia romana, enquanto outros aceitaram a atribuição à Idade do Ferro; possivelmente, a necrópole abrangeria sepulturas de ambos os períodos, como admitia o próprio Cenáculo (Vilas-Boas, 1800; Delgado, 1946-1949; Veiga, 1891; Vasconcelos, 1895).

Quanto aos sítios de habitat, Cenáculo, homem conhecedor do terreno, expressava, na mesma obra de 1800, que no litoral da sua diocese, entre Sines e Odemira, havia sítios que «dão azo para se reputarem cheios de povoações antiquíssimas» (Vilas-Boas, 1800; Fabião, 2011). Mas acerca da foz do Mira, o prelado não acreditava ser ali a sede da antiga Oxthracai, cidade lusitana destruída pelos romanos em 152 a.C. e cujo paradeiro era desconhecido. Tal suposição fora-lhe exposta, pessoalmente ou na correspondência mantida entre ambos, por José Cornide Saavedra, historiador e geógrafo galego que, numa ampla viagem por Portugal dedicada, entre outras actividades menos claras, ao estudo de antiguidades romanas, passara por Milfontes em 1798. É muito plausível que Cornide tenha observado um ou vários dos sítios arqueológicos de período romano existentes em torno da foz do Mira, que, não se sabe porquê, terá especulado ser vestígio de tal cidade antiga (Vilhena, 2014).

Passadas as explorações e as cogitações de Cenáculo, pouco depois elevado a arcebispo de Évora, tendo sido depois dispersas e perdidas as colecções do primeiro museu bejense, é apenas em meados do século XIX que advêm novas sobre descobertas de artefactos romanos no subsolo da região de Odemira, desta feita ocultos bem fundo sob o chão. Foi em Paris, na Exposição Universal de 1867, que foram apresentadas pelo historiador de arte Teixeira de Aragão duas magníficas peças romanas encontradas em minas situadas perto de Odemira (Aragão, 1867), região onde desde 1860 se verificava um surto de exploração das jazidas de ferro, manganês e cobre em minas com indícios de exploração anterior muito antiga (Vilhena e Grangé, 2011). As peças, como grande parte dos achados arqueológicos de Odemira, terra onde faltava, e ainda falta, um museu que cuidasse da salvaguarda do seu património histórico, foram depois extraviadas, mas não antes de ganharem notabilidade nos circuitos europeus de História da Arte da época. A primeira é o chamado «vaso de Odemira» (Fig. 6), uma grande garrafa de fino vidro transparente com decoração gravada de vista panorâmica do porto romano de Puteoli (Nápoles), produzida no século IV e de que se conhecem em toda a área do Império romano apenas mais três ou quatro exemplares similares (Garcia y Bellido, 1954; Oleiro, 1963-1964; Alarcão 1988). A segunda peça é um busto masculino de bronze, com altura de 80 cm, de cabeça vazada com abertura para introdução de líquidos cerimoniais (Aragão, 1867). Ambas as peças tinham funcionalidade votiva e eram utilizadas na realização de rituais com líquidos (água, vinho, azeite). O seu achado no interior de minas deverá relacionar-se com antigas ocultações ou deposições em galerias abandonadas, ou com cerimónias de culto de mineiros aos deuses metalúrgicos e a divindades tutelares do mundo ctónico para suplicar o seu amparo na mineração subterrânea, actividade muito perigosa e frequentemente fatal (Vilhena, 2014).

Na década seguinte, Abel da Silva Ribeiro, médico e pioneiro da arqueologia moderna em Odemira, realizava investigações na parte terminal do estuário e no litoral do Mira. Mas, com excepção do achado de uma piroga cuja cronologia pode ser romana (ver texto Proto-história no concelho de Odemira neste atlas),apenas temos notícias das suas descobertas do período pré-histórico. Mesmo estas foram relatadas por terceiros, uma vez que Ribeiro nada publicou sobre as suas próprias pesquisas. É na enciclopédia Portugal, Antigo e Moderno, de 1886, na entrada sobre V. N. Milfontes, que é referida a identificação por Abel da Silva Ribeiro num promontório não especificado no lado norte da foz do Mira, de tanques de salga de peixe (cetárias) e objectos relacionados com a pesca (arpões, anzóis), cerâmicas e pregos de cobre, que não hesitou em considerar cartagineses (Leal, 1886). Serão, mais provavelmente, achados de época romana, se bem que, mais uma vez, não haja sinais do destino dado aos artefactos, nem do próprio sítio.

Nova insistência na pesquisa de antiqualhas romanas em Milfontes, mais uma vez sem resultar em publicação de resultados ou mais notícia, deu-se pelo dealbar do século XX. Leite de Vasconcelos, fundador do Museu Nacional de Arqueologia, conduziu pesquisas na Argamassa, no que testemunhos locais mais tardios afirmam ter sido uma busca infrutífera pela localização da antiga cidade de Miróbriga (Vilhena, 2014). Assunto que não mereceu mais que uma nota de rodapé por parte daquele autor, acerca da possibilidade da localização desse ópido, referido por Plínio e por Ptolomeu, em Odemira, ou no estuário do Mira. cuja ampla parte vestibular o insigne arqueólogo concebia ter sido o patulus portus (em português «amplo porto») referido no poema Ora Marítima, como se sabe, uma descrição do litoral ocidental da Europa redigida no séc. IV pelo nobre romano Avieno, com base em descrições da costa muito mais antigas, gregas e/ou fenícias, do século VI a.C. (Vasconcellos, 1905; Ferreira, 1985).

Perto do fim da sua vida, Teixeira de Aragão, que além de historiador de arte e arqueólogo era numismata, ainda voltaria a debruçar-se sobre achados romanos de Milfontes, nomeadamente acerca da descoberta de moedas, incluindo um denário de prata republicano cunhado no ano 80 a.C., segundo notícia de jornal publicada mais tarde, em 1929; mas, como não será difícil de calcular nesta sucessão de extravios, as moedas... desapareceram, e, mais uma vez, sem publicação. Tampouco se guardou ou estudou algo sobre os sítios e materiais espoliados na margem norte do Mira na área de Milfontes e arredores, onde se escavaram, ao longo de décadas!, diversos tipo de estruturas romanas para reaproveitamento de pedra, e até de tijolo de sepulturas de uma extensa necrópole; o negócio sustentaria uma família de saqueadores de cantaria e antiguidades segundo notícia num jornal regional, em 1937. Durante o Estado Novo, nada mais seria encontrado, ou pelo menos referido em publicação, de sítios e artefactos romanos no estuário do Mira (Quaresma, 2003, Vilhena, 2014).

Do outro lado do concelho de Odemira, nas cabeceiras do Sado, surgia, também na década de vinte do século passado, a notícia sensacionalista (em texto desenvolvido com pretensões a realismo literário) publicada ao centro da segunda página de jornal diário da impressa nacional (Diário de Lisboa, 10/9/1925) acerca do achamento de uma necrópole romana no Cerro do Liro, ou do Encantamento, no Vale de Santiago. A descoberta foi relatada como acontecimento pitoresco, sobrevindo num recanto atrasado do Alentejo rural, cujos habitantes surgiam retratados como crédulos rústicos. Os seus achados compreendiam, em várias sepulturas construídas em pedra e argamassa de cal, diversos esqueletos, duas bilhas «milenárias» toscas, mas, por sinal, interessantes, dado que uma delas foi levada para Lisboa (para exposição na Livraria Académica, ao Chiado), bem como uma lápide funerária com caracteres latinos. Entre tanto floreado de letras, o pretensioso repórter urbano acabou por não poder dar o pormenor mais pertinente, que seria a transcrição do letreiro da estela (Guerreiro, 1987; Vilhena, 2014).

Nova descoberta de epígrafe funerária romana, gravada numa laje de grauvaque grosseira, um trabalho da primeira metade do século I, deu-se em 1957 na mesma freguesia de Vale de Santiago, na necrópole do Carvalho, no Monte dos Columbais. Na inscrição funerária lê-se CN(aei) NAEIDI / RVFI [S(it)] · T(erra) · L(evis), que em português se traduz por «De Gneu Néidio Rufo. Que a terra (te) seja leve». Recolhida pelo padre Serralheiro, e por ele publicada em co-autoria com Abel Viana e Octávio Veiga Ferreira, conserva-se junto da colecção epigráfica do pe. Serralheiro, de Messejana. Depois desta, nenhuma outra inscrição romana voltaria a ser encontrada, ou pelo menos publicada, em terras do concelho de Odemira (Encarnação, 1984).

Só volvidas três décadas se voltaria a ouvir falar de antiguidades do período romano no concelho de Odemira. Em 1982, o efémero Grupo de Estudos Arqueológicos e Etnográficos de Odemira dava notícia dos achados de cerâmicas de época romana imperial no sítio arqueológico destruído pela construção do encosto norte da ponte de Milfontes em 1978 (Fig. 7), e na área urbana de Odemira, em cujo Cerro do Castelo apareceu, numa obra particular, um lote de ânforas púnicas de tipologias gaditana tardia (séc. III e II a.C.) e itálica republicana (séc. I a.C.) (Informação Arqueológica, 1982-3; Coelho-Soares, 1986).

Portanto, trinta anos atrás, quando em todo o sul de Portugal já estavam bem estudados os padrões de distribuição e assentamento de sítios de época romana, fruto do grande desenvolvimento que a arqueologia regional dedicada ao estudo deste período em particular conheceu nas décadas de 1960 e 70, nada de palpável ou muito sólido era conhecido acerca da enorme área do concelho de Odemira. Cidades, portos, unidades fabris, vias, pontes, uillae ou inscrições romanas eram então inexistentes ou de paradeiro desconhecido. Depois, apenas se realizaram, já neste século, duas escavações arqueológicas em sítios romanos: Corgo d’El-Rei de Vila Formosa (2013) e Cerro do Castelo de Odemira (2003) (Vilhena e Rodrigues, 2009; Serra et al., n.p.).

A zona de Odemira parece, portanto, ter sido imune ao processo de romanização. O que é conhecido do período romano no concelho de Odemira deixa a ideia de um povoamento débil, quase incipiente, que apenas aumentará, e de forma exponencial, mais tarde, durante a Alta Idade Média. A ampla área do sudoeste em que esta região se integra é uma zona maioritariamente serrana, montanhosa a sul, nas faldas de Monchique, de trânsito difícil e de solos pobres. Muito diferente, portanto, das paisagens agrárias, cerealíferas e de vinhedos, que foram mais apetecíveis para o povoamento como sucedeu no Alentejo interior, no vale do Sado ou no barrocal e litoral do Algarve. As razões da “abstenção” romana em Odemira podem ter sido, portanto, induzidas em parte pela geomorfologia e pela paisagem dela resultante (Correia, 2014). No concelho de Odemira, apenas duas realidades geográficas parecem ter dado bom acolhimento à romanização:

1) a proximidade ao oceano, sobretudo o prolongamento deste para o interior, em zona de recursos mineiros, através do braço de mar do baixo estuário do Mira;

2) a zona plana e aberta a norte e nordeste, na bacia do Sado (Vilhena, 2014).

A conquista romana deste território ter-se-á dado, como em todo o país a sul do Tejo, entre os anos de 150 e 139 a.C., em consequência das guerras travadas por Roma contra os Lusitanos. As crónicas que sobreviveram da Antiguidade não fazem nenhuma menção a acontecimentos relacionados com a conquista romana do sudoeste do actual Alentejo.

Nessa altura, o mais importante povoado do território do baixo vale do Mira era o Cerro do Castelo de Odemira (Fig. 8). Fundado na Idade do Ferro, no séc. IV a.C., junto do limite de navegabilidade do estuário do Mira (Fig. 9), este povoado, que de início foi provavelmente fortificado ou, pelo menos, delimitado por um fosso, teve uma romanização precoce que, a julgar pelos materiais arqueológicos, se desenvolveu logo na segunda metade do século II a.C., pouco depois da conquista romana do território a sul do Tejo. Florescente até à mudança de Era, o sítio deixar-se-á depois despovoado, ou quase, durante todo o Império, apesar de até ao século II d.C. terem permanecido em seu redor pequenas instalações rurais, em número de meia dúzia. Odemira parece ter sido mais um caso de urbanismo falhado de cidades de fundação pré-romana que, à semelhança de outras circunvizinhas (Garvão, Mesas do Castelinho), foram seriamente afectadas pela reorganização administrativa do principado de Augusto, conduzida a partir de 27 a.C.. A transformação económica e política consequente no xadrez regional terá conduzido ao seu declínio e rápido abandono, ainda no século I, em favor de outras centralidades, como Beja ou Santiago do Cacém (Vilhena e Rodrigues, 2009; Fabião e Guerra, 2010; Vilhena, 2012; id., 2014; Correia, 2014).

Os dados obtidos pela escavação realizada em 2002-3 dos níveis tardo-republicanos, que correspondem à fase final do enchimento, como vala detrítica, do fosso defensivo do povoado de Odemira (estrutura da Idade do Ferro que já não estava em funcionamento na altura da conquista romana) mostraram uma acentuada romanização da cultura material, verificada a partir de meados do século II a.C.. Importações de belas e luxuosas frágeis taças de cerâmica campaniense dos tipos A e imitação de B vindas de Itália (Campânia e Lácio), acompanhavam grande número de ânforas romanas e púnico-gaditanas provenientes do sul da Andaluzia (Cádiz e Guadalquivir), contendo molhos, preparados e conservas de peixe salgado, azeite e vinho. Nesta fase tardia do período republicano romano, o povoado de Odemira parece ter sido ainda um entreposto comercial onde chegavam pelo Mira ­— rio que os navios oceânicos de média capacidade podiam sulcar sem a necessidade de contrariar a corrente fluvial, uma vez que as marés sobem com vigor por todo o curso do estuário até Odemira — produtos mediterrâneos que eram consumidos pela comunidade local. Provavelmente, uma parte significativa, que não é possível quantificar, seria redistribuída por outros povoados do interior, como Garvão ou Colos (Coelho-Soares, 1987; Vilhena e Rodrigues, 2009).

Estudos parcelares de outros artefactos e ecofactos recuperados na escavação do fosso mostram mudanças importantes nas actividades da comunidade que habitou no Cerro do Castelo de Odemira entre a Idade do Ferro e o período romano:

passou-se a fazer na área do povoado produção de ferro-esponja por redução directa de minerais ferrosos, e não apenas refinação e forja de ferro;

o gado passou a ser abatido em idade maior, o que se julga estar relacionado com um maior aproveitamento de tracção animal e de produtos secundários da pecuária (leite, lã);

no período romano tornou-se predominante a caça de grande porte (veado, javali) sobre a criação de gado, facto que se pode relacionar com a actividade cinegética recreativa de indivíduos com maior estatuto social, como militares;

emergem claros indícios de pesca no rio e estuário, como vértebras de grandes peixes, moluscos marinhos e estuarinos, bem como uma agulha de bronze para fabrico e reparação de redes de pesca (Fig. 10).

É possível que esta transformação no espectro de actividades económicas e industriais aponte para uma alteração na componente etno-sociológica do sítio de Odemira (Vilhena e Grangé, 2011; Vilhena, 2012; Davis e Vilhena, n.p.).

O período romano republicano terá marcado também o início de uma economia do mar e do rio por parte das populações do estuário, algo que parece não ter sucedido tanto durante a Idade do Ferro. Viu-se atrás que durante boa parte da II Idade do Ferro, por razões desconhecidas, mas presumivelmente relacionadas com a insegurança acarretada pela proximidade do mar, o povoamento da região parece ter recuado para a relativa tranquilidade do alto estuário, mais afastado e escondido, onde até ao século I d.C. dominou o povoado do Cerro do Castelo de Odemira. Mas a partir de meados do século I antes da nossa Era, o baixo estuário do Mira encheu-se outra vez de gente, transcorridos pouco mais ou menos cem anos após a conquista e o início do processo de romanização deste território (Vilhena, 2012; Id. 2012a).

No braço de rio do Esteiro da Gama (Porto da Mó), o sítio precursor desse ímpeto do povoamento em direcção ao mar terá sido, entre meados e finais do século I a.C., a jazida Gama 1, um pequeno assentamento romano em elevação baixa, mas destacada, na margem do esteiro e a poucos quilómetros da foz do Mira (Fig. 11 – n.º 1). Dados a sua posição e tipo de estruturas, poderá corresponder a um castellum, como se conhecem vários exemplos no Alentejo até ao Guadiana. Possivelmente, estes pequenos castelos foram fortins para policiamento e controlo de determinadas áreas mineiras ou da circulação fluvial, ou ainda residências fortificadas habitadas por colonos latinos instalados numa primeira fase de efectiva ocupação romana do território, anterior à constituição das grandes uillae romanas (Fabião, 2002; Vilhena e Rodrigues, 2009).

No Mira, como noutros rios da costa ocidental (Sado, Tejo), um processo de «atlantização» ocorrido no século I parece ter conduzido as comunidades para o litoral e para a parte terminal dos estuários, onde germinaram novos centros urbanos assentes na economia do mar, nomeadamente na pesca, na indústria de conservas de peixe e de tinturaria, e no comércio marítimo (Tavares da Silva & Soares, 1993). No seu conjunto, a foz do Mira parece ter tido um povoamento poli-nucleado, mas importante, em ambas as margens do estuário, entre os séculos I e IV d.C., que não deixaria de ser relevante no contexto das costas da Lusitânia. Esta foi uma das principais províncias do império romano, devido à riqueza dos solos, dos minérios, das pescas e conservas piscícolas — produções que, excepto a produção agrária, a foz do Mira proporcionava.

O maior sítio romano do Mira foi certamente a mancha urbana distribuída pela margem norte ao longo de quase um quilometro, entre a ponte e o colégio de Milfontes. O encosto norte da ponte de Milfontes destruiu grande parte de uma instalação ribeirinha, possivelmente com funcionalidade também portuária (Fig. 11 – n.º 2). No local, encontram-se restos de construções (tijolos, argamassas de cal, pavimentos, paredes), objectos metálicos e abundantes recipientes cerâmicos datados de entre os séculos I e IV d.C (Quaresma, 2003; Vilhena, 2012a). Do leito do rio nesta zona, foi recuperada parte de uma ânfora romana (Fig. 12). Muito próximo deste local existe um tanque rupestre de planta rectangular, escavado no afloramento rochoso da margem do rio, a cota entre marés. Muito provavelmente, serviu para celebrar cultos religiosos de natureza indígena ou oriental, relacionados com água e/ou libações com outros líquidos (Vilhena, 2014).

Ao longo do rio a jusante da ponte, desde os socalcos a meio da vertente sobre a margem até ao rebordo da planície litoral, no lado sul da Rua Custódio Brás Pacheco, via de entrada em Milfontes, têm sido pontualmente encontrados sinais da vasta povoação romana de Milfontes. No Monte da Rosa, encontraram-se lápides funerárias romanas, entretanto desaparecidas, e muros de construções romanas (Fig. 11 – n.º 3). No Bairro do Montinho, existiam, enterradas bem fundo na areia, sepulturas feitas de tijolos (o que aponta para cronologia romana), paredes de casas e concentrações massivas de escórias de produção de ferro (Fig. 11 – n.º 4). No recinto desportivo do Colégio de Milfontes foram encontrados, a profundidade considerável, um grande feixe de cavilhas de bronze e um pequeno caldeirão do mesmo metal, ambos de cronologia romana (Fig. 11 – n.º 5). Infelizmente, nenhuma destas descobertas foi alguma vez devidamente estudada, e a desenfreada construção civil por toda esta área levou à irremediável destruição da maior parte dos vestígios arqueológicos. A povoação romana de Milfontes, pela sua área e localização, deverá corresponder a um antigo vicus industrial dedicado especialmente à economia do mar e à beneficiação de minerais metálicos, mas não desprovido de áreas administrativas públicas, como o fórum.

Parte das terras removidas na margem direita do rio aquando da construção da ponte em 1978 foram utilizadas para o assentamento da rotunda no topo do cabeço do semáforo de Milfontes, no lado norte da foz do Mira (Fig. 11 – n.º 6). Por ali se encontram peças cerâmicas romanas datadas da segunda metade do século I ao século III, provavelmente trazidas junto com as terras provenientes da destruição do sítio romano da ponte de Milfontes. Mas este promontório da foz do Mira pode ter sido também ocupado na Idade do Ferro e na época romana. Parece ter sido naquele local, ou próximo, que Abel da Silva Ribeiro documentou a presença de vestígios de construções romanas que considerou «cartagineses». Estudos geológicos demonstraram que a elevação foi uma ilha de maré em plena boca do rio, separada de terra por um antigo canal fluvial que desaguava na Praia do Carreiro da Fazenda, a norte. Esta ilha existiu, possivelmente, até à mudança de Era, quando o processo de acumulação de areias a uniu a terra e deu origem ao cordão dunar sobre o qual corre a Avenida Marginal da Praia de Milfontes. As ilhas costeiras eram importantes para a geografia de povoamento e da religião do final da proto-história e período romano: na Lusitânia, Tróia, Pessegueiro e Alvor são exemplos disso. De tipo similar ao tanque rupestre da ponte de Milfontes, encontra-se ali nas rochas do lado nascente do promontório, na passagem entre as praias da Franquia e do Farol, outro tanque talhado na rocha a cota entre marés, chamado de Tanque da Moura (coordenada geográfica: 37º43’12,4N 8º43’12,41’'O) (Fig. 13). Actualmente colmatado por areias, acreditava-se que ali aparecia na manhã de S. João uma moura encantada (Pereira, 1990; Quaresma, 2003; Vilhena, 2012a; Id., 2014). Na Pedra do Patacho, na frente de mar dessa paleo-ilha da barra de Milfontes, foi recuperado em 1976 um cepo de chumbo de âncora romana, com 90 kg e 1,22 m de amplitude, que, dados a posição e local onde foi encontrado, se terá perdido devido ao naufrágio do navio a que pertenceu. Guarda-se no Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal (Alves et al., 1988-1989).

À volta do vicus de Milfontes, existiram no período imperial várias instalações romanas em ambas as margens do segmento final do estuário do Mira. Dão conta de um povoamento ribeirinho relativamente denso, inexistente na anterior 2.ª Idade do Ferro e que deve ter perdurado, na maioria dos sítios, até final do império romano.

Na Vila Formosa, em frente a Milfontes, existem no esteiro do Corgo d’el Rei, foz de pequeno ribeiro que conflui na margem esquerda do Mira, vestígios de construções de um sítio ribeirinho romano que foi ocupado entre os séculos II e IV d.C. (coordenada geográfica: 37º43’10,8’’N 8º46’41,9’’O) (Fig. 11 – n.º 7). Realizaram-se ali sondagens arqueológicas em 1995 e em 2013. Estes trabalhos evidenciaram a presença de edifícios com pequenos compartimentos rectangulares, construídos com muros de pedra e argamassa de cal e areia, quadrantes de colunas de tijolo, revestimentos de estuque, pavimentos de terra batida, telhados de tégulas e imbríces. Encontraram-se também restos de fauna (mamíferos e moluscos marinhos), metais, cerâmica comum e fragmentos de ânforas produzidas na Bética, datadas do século II. A mancha de construções romanas prolonga-se da margem do esteiro aos patamares da vertente a leste. Fala-se também da existência de um antigo aqueduto entre o sítio romano e a lagoa situada mais a montante no ribeiro. As estruturas romanas escavadas no Corgo d’El Rei parecem ter sido muito danificadas devido a deslizamentos de terrenos na encosta e, sobretudo, à tradicional reutilização de pedra aparelhada, que reduziu muito a envergadura das paredes (Serra et al., n.p.). O sítio é visitável, mas as estruturas romanas escavadas não estão visíveis.

Em melhor estado de conservação parecem estar as ruínas romanas que existem na Argamassa e no Corgo das Conchinhas, na margem esquerda do Mira, junto da foz do Esteiro da Gama na grande curva do rio no Moinho da Asneira (Fig. 11 – n.º 8). Neste sítio, algumas das construções romanas estão por debaixo de construções modernas, que aparentemente não causaram grande destruição às mais antigas. Num ponto, uma das paredes de casa romana eleva-se em um metro acima do solo. O sítio foi ocupado entre os séculos I e II, e dele conservam-se, além de muros, um ancoradouro possivelmente romano na margem do rio (Vilhena e Grangé, 2008; Vilhena, 2012a).

A funcionalidade e a própria tipologia destes sítios ribeirinhos que bordejam o estuário do Mira em volta do antigo vicus de Milfontes é ainda desconhecida. Não se encontraram indícios claros de tanques de fábricas de salga de peixe ou de actividades muito extensas de produção metalúrgica. A dimensão das áreas ocupadas e os modestos restos arquitectónicos que se documentaram não são suficientes para classificar nenhum deles como uilla romana. Mas são sítios que claramente procuraram a maior proximidade à água do rio salgado. Talvez estas instalações à beira-rio tenham sido dedicadas à pesca, ou simplesmente motivadas pelo bem-estar de morar junto da frescura e da tranquilidade proporcionadas pela parte terminal do estuário, ao abrigo do vento e da ondulação. Testemunho da navegação neste pequeno mar inferior, foi a descoberta, no século XIX, de uma piroga esculpida em tronco de carvalho e enterrada no lodo, algures no Esteiro da Gama. Embarcações deste tipo foram utilizadas em época romana nas costas da Lusitânia e descritas por Estrabão, no século I (Alves et al., 2005).

Outrora também navegável, o estuário da ribeira de Odeceixe, ainda que de extensão e largura menores que o do Mira, foi similarmente palco de ocupação romana, que se pode considerar como favorecida pelo meio estuarino e pela ligação directa ao mar. O sítio pré-romano de Montes da Barca, a 3 km da foz e próximo da ponte sobre a ribeira, no tradicional local de passagem a vau (ver texto Proto-história em Odemira), parece ter tido continuidade de ocupação em período tardo-republicano. E situado na mesma margem norte, no fundo do paleo-estuário, a 4 km da barra, foi observado que o centro histórico da aldeia de S. Miguel teve ocupação romana nos séc. I a III d.C. (Fig. 15). Esta é testemunhada por estruturas murais, entretanto soterradas ou destruídas, subjacentes à ermida seiscentista de S. Miguel, e corroborada por cerâmicas, com destaque para fragmentos de terra sigillata sudgálica, terra sigillata clara A e de ânfora Dressel 14 Lusitana, encontrados na recente escavação arqueológica da ermida, demolida na década passada (Quaresma e Falcão, n.p.).

Para nascente de Milfontes, passada a aba oriental da cordilheira litoral da serra de Cercal - S. Luís, a paisagem abre, plana, e é quase imperceptível a transição entre as bacias do Mira e do Sado. Esta foi a zona mais densamente ocupada em período romano na região de Odemira, a seguir ao baixo estuário do Mira. Não apenas são terras férteis e ao abrigo dos ventos e da salsugem do mar, como são irrigadas pelas nascentes da serra. No Cercal, cujo nome pode ter origem no latim quercal (do latim quercus, carvalho, portanto, «carvalhal» ou «sobreiral») existe na Mandorelha ruína do muro de uma barragem de sólida construção (pouco a jusante de uma outra, de Época Moderna) que, pela tipologia, datará de época romana, muito oculta pela vegetação da ribeira. Um pouco mais a sul, no Adurraco, na fronteira com Odemira – na mesma zona da antiga escavação de uma necrópole romana pelo bispo Cenáculo (v. supra) –, existe um grande muro perpendicular à ribeira da Despada que parece ser uma segunda barragem (plausivelmente) de período romano. Ambas as barragens serviriam para fins de irrigação e constituição de reserva de água para casais rurais ou uillae romanas, ainda não detectadas. Assinale-se, aliás, que nunca a extensa planície de toda da raia norte do concelho de Odemira foi prospectada por arqueólogos, incluindo a zona nordeste que drena para o Sado. Mas sabe-se contudo que o centro histórico de Colos teve ocupação romana no séculos I a III, descortinada por escavações arqueológicas recentes. O nome Colos pode ser relacionado com o cognomen Coilicus que surge numa epígrafe funerária romana encontrada no vizinho concelho de Ourique (Guerreiro, 1987; Correia, 2014).

De ambos os lados da ribeira da Despada, que divide os concelhos de Odemira e Santiago do Cacém, existem diversos escoriais de época romana, nas zonas de Catifarras/Salgadinho e nos Trajanos, a ponto de dar origem ao nome de lugar Ferraria, um pouco mais a sul. São escoriais de grande dimensão, e tudo indica que a produção siderúrgica conheceu um forte incremento no período romano, com grandes centros produtores que, em conjunto, evidenciam o funcionamento deste distrito siderúrgico ao longo de cinco séculos do império romano. Em algumas destas ferrarias, potentes amontoados de escórias com mais de três ou quatro metros de altura – que têm sido destruídos para extracção de escórias utilizadas na pavimentação de caminhos rurais — encontram-se fragmentos cerâmicos que dão pistas sobre a cronologia do seu período de laboração. Trajanos (com cerâmicas terra sigillata Clara D de procedência norte-africana) e Monte das Ferrarias (Colos) (Fig. 16), em actividade nos séc. III-IV a V, são enormes escoriais do Baixo Império romano; Monte Figueiras, perto do Vale Ferro, Casa Nova ou Zambujeira Velha são, como vários outros, exemplos de ferrarias do Alto Império, dos séc. I a III d.C (Vilhena e Grangé, 2011).

Um dos mais antigos centros produtores de ferro foi Ameixiais de Cima 4 (Santa Maria), na margem da ribeira da Capelinha e sobre a Falha de Messejana. Neste sítio, datado do século I, toda a cadeia siderúrgica – da mina à modelação em forja do metal – estava presente. Exploraram-se no próprio local nódulos rolados de minério de ferro em um grande corta mineira aberta em depósitos de argilas de aluvião. Logo ao lado da mina, num pequeno cabeço rectangular amesetado delimitado entre a corta mineira e duas ribeiras paralelas que convergem na ribeira da Capelinha, foram processadas, em áreas distintas, tanto a operação de redução de minério a ferro-esponja em baixo-forno segundo a tecnologia, introduzida na altura, de vazamento de escórias liquefeitas da fornalha, quanto a operação de pós-redução (refinamento de esponjas) e forja de ferro (Fig. 17). Os materiais e a escala dos antigos trabalhos siderúrgicos apontam para que este tenha sido, face ao que se conhece, um dos primeiros povoados minero-metalúrgicos importantes da região (Vilhena & Grangé, 2011). No século anterior à laboração de Ameixiais de Cima 4, também no Cerro do Castelo de Odemira e no provável castellum de Gama 1, se realizava igualmente beneficiação de minérios de ferro.

Outros metais disponíveis em jazidas poli-metálicas podem ter sido também explorados. Adurraco e Trajanos situa-se muito perto da jazida de ouro de Salgadinho, que pode ter sido explorada na antiguidade. Na Mina do Torgal, o recursos, que foram explorados chumbo e prata (galena argentífera). Perto de Colos, a mina de cobre do Telheiro tem ao lado um casal rural romano, recentemente identificado.

A presença de cerâmicas finas (terra sigillata), de importação extra-regional, nos grandes escoriais da região no Baixo Império, parece vir corroborar o que já indiciavam as descobertas feitas há 150 anos de peças do século IV no interior de minas romanas. A industria mineira da região de Odemira e Cercal parece ter alcançado escala e complexidade que não foram ainda devidamente compreendidas.

No interior, um sítio ocupado durante a fase final do período romano parece mostrar nova tendência para um povoamento alcantilado e fortificado, como aliás se verifica na restante Lusitânia em consequência da insegurança causada pelo desmantelamento da ordem do Império de Roma. É o Cerro do Castelo, no Viradouro, Sabóia, onde achados de fragmentos de taças de terra sigillata tardia mostram que este provável antigo povoado fortificado da Idade do Ferro foi de novo reocupado nos séc. IV e V d.C. (Vilhena, 2006) (Fig. 18). Mas, mais uma vez, a presença deste tipo de cerâmicas finas importadas do Norte de África em época romana tardia, dos mesmos tipos que se encontram nas ferrarias de Cercal e Colos, aponta para a continuidade, apesar da crise, dos circuitos comerciais inter-regionais.

 

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Fig. 1 – Cabo Sardão. Segundo frei Manuel do Cenáculo, o pároco de S. Teotónio, José Gaspar Simões, recolheu no séc. XVIII uma estatueta de Hércules criança, algures na freguesia adjacente ao cabo.

 

Fig. 2 – Texto manuscrito de Cenáculo, Sisenando Mártir Beja sua Pátria, 1800, com descrição de estatueta de Hércules recolhida pelo prior de S. Teotónio. Col. Biblioteca Pública de Évora, CXXIX).

 

Fig. 3 – O tema mitológico das serpentes enviadas por Hera para matar Hércules, filho ilegítimo de Zeus, é repetido na arte romana. Mosaico de Antioquia, séc. II d.C.

 

Fig. 4 – Estatueta de bronze de c. 1700 com representação do mesmo tema. O combate de Hércules com as serpentes de Hera era célebre entre os eruditos no século de Cenáculo.

 

Fig. 5 – Desenho do séc. XVIII do bracelete de bronze com extremidades serpentiformes, achado na escavação de Cenáculo na necrópole do Raco (Cercal). Seg. Delgado, 1946-1949 Fig. 3.

 

Fig. 6 – Decoração fravada no vaso de vidro de Odemira atribuído à época romana. Seg Garcia y Bellido, 1954, Fig. 3. Perdido o paradeiro da peça, este desenho que remonta ao século XIX é a sua única ilustração existente.

 

Fig. 7 – Construção da ponte de Milfontes, em 1978. O encosto norte destruiu parte do vicus romano de Milfontes, facto assinalado em 1982 pelo então recém-formado Grupo de Estudos Arqueológicos e Etnográficos de Odemira.

 

Fig. 8 – Cerro do Castelo de Odemira. Vista de sudoeste. Na zona mais alta, ocupada pela actual Biblioteca Municipal sobreposta à reconstrução na década de 1970 das muralhas do castelo medieval, têm sido encontrados desde 1982 materiais arqueológicos da Idade do Ferro tardia e do período romano tardo-republicano.

 

Fig. 9 – Cerro do Castelo de Odemira (assinalado entre setas vermelhas), no fundo do estuário do Mira. Vista de noroeste, 1999.

 

Fig. 10 – Agulha ou naveta de bronze, para reparação de redes de pesca. Séc. I a.C. Fosso da Idade do Ferro de Odemira.

 

Fig. 11 – Foz do Mira. Sítios arqueológicos romanos: 1 – Gama 1 (séc. I a.C.), 2 – Encosto norte da ponte de Milfontes (séc. I a IV), 3 – Socalcos na margem do Mira, 4 – Monte da Rosa (necrópole), 5 – Bairro do Montinho (escorial e sepulturas), 6 – Paleo-ilha do Semáforo de Milfontes (materiais cerâmicos dos séc. I a III), 7 – Corgo de el-Rei (séc. II a IV), 8 – Argamassa e Corgo das Conchinhas (séc. I e II).

 

Fig. 12 – Ânfora romana, Almagro 50, recuperada no leito do Mira, junto da ponte de Milfontes.

 

Fig. 13 – “Tanque da Moura”, nos Roxos Pretos, entre as praias da Franquia e do Farol de Milfontes. Cavidade rectangular escavada na rocha. Pode datar de época romana, como o similar tanque rupestre da Ponte de Milfontes. Devido ao volume de areia depositada pelas marés, encontra-se frequentemente oculto. Vista de poente.

 

Fig. 14 – Muros de época romana de Corgo de el-rei (séc. I-II d.C.). Escavação de 2013. Foto: Palimpsesto. Lda.

 

Fig. 15 – Paleo-estuário da ribeira de Odeceixe, palco de ocupação da Idade do Ferro tardia (Montes da Barca, ao fundo, à direita) e de período romano imperial (S. Miguel, séc. I-II d.C.). Vista de nascente.

 

Fig. 16 – Grande concentração de escórias de redução de ferro de Ferrarias (Colos). A operação repetida no local de fornos de transformação de minérios de ferro em metal produziu enormes quantidades de despejos de jorras, com altura superior a 3 m. Muito destruído devido a extracção de escórias para uso em pavimentos de caminhos rurais, a ferraria data de período romano (séc. III-IV d.C.). Foto de 1995.

 

Fig. 17 – Ferraria de período romano de Ameixiais de Cima (Santa Maria de Odemira), séc. I d.C. Imediatamente ao lado da grande corta onde se mineravam a céu aberto nódulos de ferro rolado em depósitos de argila (espaço 1 entre setas), o processo siderúrgico era continuado com selecção e beneficiação dos minerais de ferro obtidos na mina do povoado mineiro (espaço 2 entre setas), com zonas de fornos de redução a norte, contigua à corta (seta da direita) e de pós-redução, a sul (do centro da mesa até ao local indicado pela seta da esquerda). Vista de nascente.

 

Fig. 18 – Cerro do Castelo do Viradouro, período romano tardio (séc. IV-V d.C.), ao centro do grande vale de fractura tectónica ocupado pela ribeira de Telhares. Como o nome desta indica, a zona é rica em depósitos estratificados de argila, tradicionalmente explorados para olaria. No próprio povoado, um destes barreiros cortou grande parte da vertente abrupta da encosta sul do sítio (corte visível atrás da cortina de árvores da galeria ripícola da ribeira). Vista tomada de sul.