Preexistências de Alcácer do Sal. A acrópole

Freguesia/Concelho:Alcácer do Sal (Santa Maria do Castelo).

Localização:38°22'20.45"N; 8°30'46.83"W (C.M.P. 1:25.000, Folha 476).

Cronologia:Idade do Ferro, Romano, Medieval Islâmico e Medieval Cristão.

De 1979 a 1981, na sequencia de obras de construção de um depósito de água no castelo de Alcácer do Sal, obras que destruíram estratos e estruturas arqueológicas, o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) procedeu a trabalhos de escavação na área confinante com a do referido depósito (Tavares da Silva et al., 1980-81). Esta intervenção revelou potente sequência estratigráfica (cerca de 6 metros de espessura), um verdadeiro tell com horizontes de ocupação que, remontando ao Neolítico final/Calcolítico antigo, compreendia o Bronze final, a Idade do Ferro orientalizante (séculos VII-VI a.C.), o Romano imperial e o Período Islâmico.

Destacamos os estratos da Idade do Ferro e da Época Romana.

Do Ferro I (séculos VII-VI a.C.), ou período orientalizante, registaram-se estruturas constituídas por muros rectilíneos e ortogonais, possuindo a base formada por blocos de calcarenito, ligados por argila, e a parte superior por adobes; os pavimentos mostravam revestimento de argila vermelha; alguns dos muros eram revestidos por argila da mesma cor. Os conjuntos artefactuais respectivos indicam, tal como as estruturas arquitectónicas, presença cultural fenícia ocidental, tendo surgido, na cerâmica ao torno, a de engobe vermelho, a cinzenta fina, os pithoi com pintura policroma de bandas, as ânforas do tipo 10.1.2.1 de Ramón.

Os níveis do ferro II (séculos V-II a.C.) ofereceram cultura material que parece estar na evolução da do período orientalizante, de carácter mediterrâneo e semita. Esta tradição mantém-se inclusivamente no horizonte romano-republicano (séculos II e I a.C.).

As mesmas escavações deram a conhecer, no que concerne à Época Romana imperial, uma área pavimentada, rua ou praça, ladeada por tabernae, provavelmente da época claudiana.

Em 1982, o Museu Municipal de Alcácer do Sal realizou escavações defronte da Igreja de Santa Maria do Castelo (Faria, 2002), tendo sido posta a descoberto uma “construção com cella de planta rectangular, com uma grande entrada num dos topos menores e cabeceira em abside” (Faria, 2002, p. 91), que teria feito parte do forum romano de Salacia; o espólio arqueológico que lhe estava associado “abarca um período que vai do século I aos inícios do século II” (Faria, 2002, p. 96).

As extensas escavações de emergência efectuadas de 1993 a 1997 na área do antigo Convento de Nossa Senhora de Aracaelli, que precederam e acompanharam a adaptação deste edifico religioso a pousada, e ainda muito preliminarmente publicadas, revelaram, em níveis atribuíveis aos séculos IV-III a.C., construções “de planta rectangular, de três ou mais divisões, dispostas em alinhamento em ambos os lados de um caminho” (Faria, 2002, p. 101), e um provável santuário sugerido pelo achado de um conjunto de peças de bronze, desprovidas de contexto, compreendendo representações antropomórficas (orantes/ofertantes masculinos e femininos, guerreiros) e zoomórficas (bovinos, equídeos, canídeo) e ex-votos anatómicos (representações de braço, perna, pé), santuário que “teria uma conotação salutífera e profilática, traduzindo quiçá uma devoção [...] popular, embora não faltem elementos que remetem para um culto de carácter cívico como as figurinhas de guerreiros” (Gomes, 2012, p. 107). Situado nas proximidades do santuário anterior surgiu outro, “do período romano, datável da segunda metade do século I, invocando um culto oriental” (Faria, 2002, p. 90), que integrava notável tabella defixionis.

Para concluir a referencia às principais escavações arqueológicas realizadas na área urbana/castelo de Alcácer do Sal, importa atender à intervenção de emergência recentemente ocorrida na Rua do Rato, na zona ribeirinha, que exumou um importante conjunto de peças cerâmicas, de bronze e de osso, datável dos finais do século VI e inícios do V a.C., pertencente a “um contexto religioso de feição comercial, como sugere a presença de uma balança com os respectivos ponderais, estritamente conotado com o tráfego fluvial [...]. É possível que estejamos ante um depósito secundário, onde um conjunto de oferendas terá sido amortizado como forma de vedar o seu uso profano após a consagração à divindade, possibilidade sugerida pelo excelente estado de conservação dos materiais, mas parece-me também plausível que se tenha escavado parte do santuário propriamente dito, cuja existência, por outro lado, me parece inegável” (Gomes, 2012, p. 102-103).

Além da documentação arqueológica disponibilizada pelas escavações atrás referidas, há ainda que contar, para o estudo das preexistências de Alcácer do Sal, com numerosos elementos recolhidos sem contexto, muitas vezes acidentalmente, de que destacamos a terra sigillata, sobretudo itálica, revelando a importância da povoação no final do século I a.C. e durante a primeira metade do século seguinte (Dias, 1978; Diogo, 1984; Sepúlveda et al., 2000), as moedas dos séculos II-I a.C. cunhadas localmente, os monumentos epigráficos (Encarnação, 1989).

Os dados disponíveis sugerem que durante a Idade do Ferro, logo a partir do século VII a.C., a colina coroada pelo castelo de Alcácer do Sal foi ocupada por importante povoado, provavelmente uma cidade-entreposto aberta ao comércio mediterrâneo, principalmente gaditano; o seu porto escoaria produtos oriundos do rico hinterland alentejano, muitos deles transformados localmente, ao mesmo tempo que recebia gentes e cultura forâneas.

Tratar-se-ia, pois, de um centro urbano aberto ao exterior, cosmopolita, onde o elemento cultural mediterrâneo e semita seria predominante, senão mesmo fundador. Isto é, o nascimento da povoação sidérica poderia ter-se ficado a dever a Fenícios do Ocidente após a decadência e colapso do estabelecimento comercial de Abul (Mayet & Tavares da Silva, 2000). Esse cunho orientalizante e uma forte ligação a Gadir teriam marcado toda a história da ocupação sidérica e ter-se-iam prolongado inclusivamente pelo período romano-republicano. Nesta última época, logo na segunda metade do século II a.C., a povoação passa a cunhar moeda que copia o modelo gaditano (Faria, 1995), cuja diferença reside apenas na inscrição existente no reverso dos numismas: nas moedas de Alcácer é em caracteres indígenas que remetem para a escrita do Sudoeste; nas de Gadir é púnica. A primeira indica o nome pré-romano de Alcácer do Sal que, segundo A. Marques de Faria (1992) seria BEUIPO. Em meados do século I a.C., ocorre segunda emissão de numismas, mas agora com a inscrição latina IMP(eratoria) SAL(acia) ou IMP SALAC.

A cidade romana mantém a importância da da Idade do Ferro, sobretudo durante o período augusto-claudiano. Os numerosos textos epigrafados mostram, entre outros aspectos, a elevada frequência dos cognomina gregos, as famílias que integravam a classe dominante, a importância dos “libertos, que aqui aparecem dotados de um dinamismo particularmente bem sucedido, capaz de elevar alguns dos seus membros a posições destacadas, no caso de atribuirmos a Himerus e a Philon ascendência servil” (Faria, 2002, p. 54), a presença de cultos orientais...

A importância económica, social e política de Salacia, capital de civitas, obrigava naturalmente à existência de forum, onde provavelmente se exerceria o culto imperial.

A partir do século II, Salacia teria entrado em franca decadência, ao mesmo tempo que junto à foz do Sado se desenvolvia o centro de produção de preparados piscícolas de Caetobriga, estruturado por dois núcleos principais: o de Setúbal e o de Tróia.

Referência bibliográficas

DIAS, L. F. (1978) – As marcas de terrasigillata do Castelo de Alcácer do Sal. Setúbal Arqueológica, 4, p. 145-154.

DIOGO, A. M. D. (1984) – Noções operatórias sobre terra sigillata itálica e sudgálica em Portugal. Alguns aspectos. Revista de História Económica e Social, 14, p. 49-65.

ENCARNAÇÃO, J. D’ (1989) – Culto e sociedade na Salacia romana. Actas del Colóquio Internacional de Epigrafia, Culto y Sociedade en Occidente. Barcelona, p. 161-169.

FARIA, A. Marques de (1992) – Ainda sobre o nome pré-romano de Alcácer do Sal. Vipasca, 1, p. 39-48.

FARIA, A. Marques de (1995) – Moedas da época romana cunhadas em território actualmente português. Archivo Español de Archeologia (Anejos), 14, p. 143-153.

FARIA, J. C. L. (2002) – Alcácer do Sal ao tempo dos Romanos. Lisboa: Edições Colibri/Câmara Municipal de Alcácer do Sal.

GOMES, F. B. (2012) – Aspectos do sagrado na colonização fenícia. Lisboa: Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.

MAYET, F. & TAVARES DA SILVA, C. (2000) – L`établissementphénicien d’Abul (Portugal). Comptoir et santuaire. Paris: E. De Boccard.

SEPÚLVEDA, E. de; FARIA, J. C.; FERREIRA, M. (2000) – Cerâmicas romanas do lado ocidental do castelo de Alcácer do Sal, 1: terra sigillata. Revista Portuguesa de Arqueologia, 3 (2), p. 119-152.

TAVARES DA SILVA, C.; SOARES, J.; BEIRÃO, C. de Mello; DIAS, L. F. & COELHO-SOARES, A. (1980-81) – Escavações arqueológicas no castelo de Alcácer do Sal (campanha de 1979). Setúbal Arqueológica, 6-7, p. 149-218.

Carlos Tavares da Silva

 

Fig. 1 – Alcácer do Sal. A – área da acrópole; B – área da necrópole do Senhor dos Mártires.

Fig. 2 – Alcácer do Sal. Acrópole. Imagem de satélite Google Earth.

 

Fig. 3 – Castelo de Alcácer do Sal. Intervenções arqueológicas. Seg. Faria, 2002.

 

Fig. 4 – Perfil estratigráfico obtido pelas escavações arqueológicas do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) em 1979. De baixo para cima: Camada (C.) 11 – Bronze final; Cs. 10 e 9 – Ferro I (período orientalizante); Cs. 8 e 7 – Ferro II (de tradição orientalizante); C. 6 – Romano republicano; Cs. 5-3 – Romano imperial; Cs. 2 e 1 – Medieval-Moderno. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

Fig. 5 – Castelo de Alcácer do Sal. Estruturas do período orientalizante. Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 6 – Castelo de Alcácer do Sal. Estruturas do período orientalizante. Atenda-se à argila de cor vermelha que revestia o pavimento. Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 7 – Castelo de Alcácer do Sal. Cerâmica do período orientalizante. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

Fig. 8 – Castelo de Alcácer do Sal. Estruturas da Idade do Ferro de tradição orientalizante. Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 9 – Castelo de Alcácer do Sal. Pratos de pescado, sobrepostos no estrato de incêndio (C. 8), do século V a.C.. Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 10 – Castelo de Alcácer do Sal. Cerâmicas do Ferro II, de tradição orientalizante. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

Fig. 11 – Castelo de Alcácer do Sal. Aspecto geral do horizonte da Época Romana escavado pelo MAEDS (1979-81).

 

Fig. 12 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Tabernae, abrindo para uma calçada (rua ou praça). Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 13 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Conduta de água. Escavações do MAEDS (1979-81).

 

Fig. 14 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Escavações do Museu Municipal na área do presumível forum. Seg. Faria, 2002.

 

Fig. 15 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Escavações no Convento de Aracaelli. Aspecto do santuário, vendo-se em primeiro plano a cella do tanque. Seg. Faria, 2002.

 

Fig. 16 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Tabela defixionis encontrada no santuário. Seg. Faria, 2002.

 

Fig. 17 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Busto do Imperador Cláudio. Seg. Faria, 2002.

 

Fig. 18 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Cerâmica campaniense. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

Fig. 19 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Marcas em terra sigillata. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

Fig. 20 – Castelo de Alcácer do Sal. Horizonte da Época Romana. Ânforas. Seg. Tavares da Silva et al., 1980-81.

 

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