Concheiros Neolíticos da Comporta: uma particular economia estuarina

Joaquina Soares

Carlos Tavares da Silva

 O território

A ocupação pré-histórica da Comporta, mais precisamente da linha de costa situada entre esta povoação e a Carrasqueira, foi dada a conhecer pela primeira vez em Ribeiro et al., 1965, com a publicação de três jazidas dotadas de níveis conquíferos, ricos em cerâmica. Em 1969, os signatários realizaram a prospecção da área, reconheceram as quatro jazidas já publicadas, que se encontravam em muito mau estado de conservação, e identificaram dois novos sítios arqueológicos. Assim, de jusante para montante, temos a seguinte carta arqueológica (Fig. 4): Celeiro Velho, Possanco, Malhada Alta, Pontal, Barrosinha (Figs. 5-9) Sapalinho e Carrasqueira.

As seis primeiras jazidas reconhecidas foram objecto de sondagens arqueológicas financiadas pelo MAEDS, em 1969, e orientadas pelos signatários. Os primeiros resultados dessa intervenção foram publicados em Soares, 1980 e em Tavares da Silva et al., 1986.

A diacronia relativamente ampla deste sistema de povoamento (Fig. 10), desde os inícios do Neolítico médio (inícios do IV milénio A.C.), até ao Calcolítico antigo (primeiro quartel do III milénio A.C.), configura a existência de um território relativamente estável, correspondente à primeira ocupação das margens do estuário, então amplamente aberto ao Oceano (Figs. 2-3).

A economia destes povoados assentou na exploração de recursos marino-estuarinos (pesca, recolecção de marisco e vegetais, e produção de sal por via ígnea), desempenhando os alimentos agro-pecuários um papel muito secundário (ovicaprinos, gado porcino e bovino). Estes estabelecimentos não possuíam arquitecturas pétreas e terão prosseguido o ritual de enterramento em fossa intra-habitat (observado na Malhada Alta), o que (tal como grande parte das estratégias de povoamento e subsistência) parece revelar tradição mesolítica. Aparentemente sem acentuadas soluções de continuidade, estes grupos, que consideramos, como hipótese de trabalho, descendentes das últimas populações de economia mesolítica do paleoestuário do Sado, foram descendo o rio, acompanhando a própria migração das condições estuarinas (Freitas e Andrade, 2008). Os seus habitats, de estruturas perecíveis, planos e abertos, instalados sobre solos arenosos, dispersam-se por ambas as margens do Sado, de Alcácer do Sal até à Mitrena e Faralhão, passando por Abul e Marateca, na margem direita e, na margem esquerda, localizados na área de Carrasqueira-Comporta, em ambiente mais oceânico do que actualmente (Fig.1). Os arqueossítios da margem direita foram sumariamente reconhecidos por prospecção de superfície, enquanto os da margem esquerda foram objecto de escavações arqueológicas, permitindo identificar um padrão locativo padronizado, próprio de uma específica cultura neolítica, de cerâmicas lisas, dotada de economia piscatória e recolectora, designada por Neolítico da Comporta. Aqui, os seis habitats intervencionados instalaram-se na extremidade de esporões arenosos, marginados por áreas húmidas.

Paleogeografia da Comporta Neolítica

Com base nos estudos de geomorfologia, fitodinâmica e malacológia foi possível propor para a Comporta uma paleogeografia substancialmente distinta da actual, ou seja, um ambiente mais oceânico e de litoral mais recortado; a Península de Tróia ainda não existiria:

[...] a península de Tróia é de formação bastante recente no troço que vai do Carvalhal até cerca de 4 Km a noroeste da praia da Comporta. A partir daí, até à Ponta do Adouxe, apenas a faixa oceânica é de formação recente. O troço final da península constituiria, muito provavelmente, durante parte da transgressão holocénica, uma ilha isolada no que é hoje o estuário do Sado” (Tavares da Silva et al, 1986).

Mais recentemente, sondagens realizadas na Península de Tróia, entre o cais dos ferry boats (Soares e Tavares da Silva, 2012) e a jazida romana de Tróia, vieram mostrar que esse sector da restinga, que actualmente a liga ao Carvalhal, e que fechou a barra da Comporta, isolando a antiga linha de costa entre a Comporta e a Ribª do Carvalhal, ainda não existia na primeira metade do I milénio A.C.. Com efeito, na base das sondagens atrás referidas, surgiu um nível de fácies marinha rico em conchas de Ervilia sp. cuja datação radiocarbónica (Beta-163594 e Beta-163593) forneceram resultados estatisticamente idênticos : 2940±70BP e 2930±70BP, que calibrados a 2 sigma (curva de calibração marine 09) abrangem o intervalo cronológico de 907 a 538 A.C.

Recursos faunísticos

Fauna malacológica

O bom estado de conservação dos restos faunísticos das duas fases de ocupação da Barrosinha permitiu obter um quadro bastante fidedigno da economia destas populações. Neste arqueossítio identificaram-se onze espécies de moluscos (Tavares da Silva et al., 1986), todas elas ainda hoje presentes no estuário do Sado, embora a distribuição actual e abundância sejam diversas, facto que corrobora a existência, durante o Neolít.ico, de outra dinâmica litoral, compatível com uma ligação mais ampla ao mar.

A espécie mais abundante é a amêijoa, Ruditapes decussatus, seguida pela navalhaou lingueirão (Solen marginatus). Embora com um peso residual, foram também consumidos berbigão, mexilhão, vieira e búzios. A recolecção estendeu-se também a algas para fins alimentares e/ou como fertilizantes dos solos arenosos da envolvente do sítio, de acordo um conjunto de pequenas conchas que só poderiam chegar ao povoado (Quadro I).

Fauna piscícola

A pesca seria a principal actividade de subsistência da população neolítica da Comporta. Na primeira fase de ocupação da Barrosinha (C.4) os peixes detêm cerca de (49,2%) da fauna de vertebrados, e na segunda fase de ocupação do mesmo sítio (C.2), os peixes possuem cerca de (61,9%) da totalidade dos vertebrados (Quadro II). Em ambas as camadas de ocupação é evidente que as capturas se centraram na família dos Sparídeos, com particular destaque para a dourada. Esta família, também a mais importante na Ponta da Passadeira (Tejo), constituiu o recurso alimentar crítico das comunidades neolíticas de economia agro-marítima, que muito provavelmente não só o consumiriam fresco, mas, por hipótese, também conservado pelo fumo e/ou salgado, durante o Inverno. Tratando-se de um recurso sazonal, que entrava no estuário na estação quente, é de admitir a maior incidência de uma pesca desenvolvida em meio estuarino. No entanto, durante a segunda fase de ocupação de Barrosinha registou-se a presença de uma grande diversidade de espécies. Sónia Gabriel identificou na Fase II cerca de 17 espécies no grupo de Diversos, das quais algumas como a sardinha (Sardina pilchardus), e o carapau(Trachurus trachurus) sugerem também a prática de uma pesca oceânica costeira.

Outros recursos faunísticos

Para além do marisco e do peixe, a população neolítica da Comporta explorou outros recursos faunísticos, que podemos agrupar em aves e mamíferos (Quadros III e IV). Verifica-se, mais uma vez, que enquanto a primeira fase de ocupação da Barrosinha parece ter sido de curta duração, a segunda fase revela grande estabilidade, associada à exploração de um amplo espectro de recursos. Destacam-se os restos ornitológicos, onde se identificaram apenas espécies aquáticas. Podemos afirmar que a caça dirigida às aves estuarinas teve um papel muito significativo na subsistência do grupo, e que a sazonalidade deste recurso complementou a actividade de pesca dirigida a espécies da família Sparidae. A análise dos mamíferos é francamente prejudicada pelo elevado número de restos não identificados. Os mamíferos selvagens estão melhor representados que os domésticos, indicando a prática de caça dirigida sobretudo a pequenos animais, particulamemnte ao coelho, e realizada na envolvente do povoado, em espaços pouco florestados, por hipótese em ecossistema de duna cinzenta e na margem de floresta, muito provavelmente com o auxílio do cão, relativamente bem representado, em ambas as fases de ocupação. Nos mamíferos domésticos estão presentes os ovicaprinos e o porco. Não foi identificada a presença de gado bovino.

Dinâmica evolutiva

Cruzando as observações estratigráficas com a cultura material e as datações radiocarbónicas, foi possível apreender a evolução cultural do Neolítico da Comporta (Figs. 10 e 11) e segmentar esse devir histórico em três fases principais:

Comporta I – A fase mais antiga até agora identificada na Comporta está representada no sítio do Pontal, e por agora é a pior conhecida. A deficiente conservação da matéria orgânica permite apenas afirmar a existência de uma economia de marisqueio, onde a recolecção de ostra pode ter sido dominante. A cerâmica (Fig. 12)apresenta pastas predominantemente semi-compactas com numerosos e.n.p. de quartzo; as superfícies são alisadas no interior e toscas no exterior; esta produção oleira tornar-se-á quase exclusiva da fase Comporta II; ocorrem, em certa abundância, exemplares de pasta compacta e superfícies bem alisadas; de um ponto de vista morfológico, a cerâmica de Comporta I (Pontal) está representada por taças em calote, esféricos altos de bordo pouco reentrante e vasos de colo; presente a decoração impressa não cardial (obtida através de punção, espátula e cunha), a decoração incisa (constituída principalmente por sulco situado abaixo do bordo, na superfície externa) e a decoração plástica (cordões verticais segmentados e mamilos sobre o bordo). Trata-se de uma decoração que encerra o ciclo da cerâmica impressa/incisa do Neolítico antigo evolucionado do Alentejo litoral (Tavares da Silva e Soares, 1981; Tavares da Silva, 1983; Tavares da Silva et al., 2010), na transição para um Neolítico médio, de cerâmicas lisas. A cerâmica do sítio de habitat de Brejo Redondo (Sines), contexto de transição para o Neolítico médio, oferece justamente semelhanças com a de Comporta I (Tavares da Silva e Soares, 2004). Esta fase de transição para o Neolítico de cerâmicas lisas, situado entre finais do V e primeiro quartel do IV milénios A.C., possui escassas datações radiocarbónicas. No Pontal foi datado em cerca de 3900-3600 A.C (Fig. 12).

Comporta II – A fase média da Comporta encontra-se representada nos dois níveis de ocupação da Barrosinha, no Celeiro Velho, Possanco (nível inferior, C. 4), Malhada Alta e Sapalinho e corresponde ao pleno Neolítico médio. Parece trata-se de uma fase de crescimento demográfico. A economia destas comunidades assentou na pesca, sobretudo de espécies da família Sparidae (Quadro II), na recolecção de moluscos marino-estuarinos, sobretudo de amêijoa (Quadros I) e na provável exploração de sal por via ígnea. A caça de aves aquáticas, lagomorfos e raramente de cervídeos, bem como a criação de algumas cabeças de gado ovicaprino e suíno estão documentadas no registo arqueológico (Quadros III). O quadro geral definido comporta diversidade, como foi possível observar em Barrosinha, onde identificámos duas fases de ocupação separadas por fase de abandono, e embora ambas pertençam ao mesmo grande período (Comporta II), correspondem a conjunturas diferenciadas e desempenharam papéis distintos na rede de povoamento à escala do território. Na primeira fase de ocupação de Barrosinha (C.4), a economia mostra-se intensiva na recolecção de amêijoa de grandes dimensões, facto que originou a formação de um denso nível conquífero. Embora estejam presentes restos de vertebrados, eles são escassos e pouco diversificados, quando comparados com os da C.2. Esta camada, que corresponde à segunda fase da vida do habitat, apresenta, pelo contrário, ampla diversidade e abundância de recursos faunísticos que nos permitem propor uma ocupação mais sedentarizada.

A cerâmica (Fig. 13) é geralmente friável, rica em e.n.p. de quartzo, e possui a superfície externa tosca, deixando perceber a utilização da técnica do rolo, e a superfície interna alisada; as formas são simples e baseiam-se na esfera (Fig. 11).

Na indústria lítica, o quartzo leitoso foi largamente utilizado; o sílex é raro, ocorrendo em peças de carácter marcadamente lamelar, em geométricos (trapézios), truncaturas e furadores. Existem significativas variações inter-habitat no que à indústria lítica respeita, que por agora não nos é possível explicar. Nos sítios da Malhada Alta e Barrosinha os artefactos líticos são escassos, ao contrário do observado no Celeiro Velho. Na C.4 da Barrosinha surgiram contas discóides de xisto, tímidos ecos de relações com o Neolítico megalpodegir nge a orla costeira alidade 00000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000ítico interior.

As acumulações de cerâmica fragmentada (característicos depósitos de tipo briquetage) observadas em Barrosinha (Fig. 8) e Malhada Alta podem indiciar a exploração de sal marinho por via ígnea em meados do IV milénio A.C.

Esta é a fase de maior crescimento demográfico do Neolítico da Comporta, datável do segundo e terceiro quartéis do IV milénio A.C. Obtiveram-se datações radiométricas para as duas camadas de ocupação da Barrosinha (Fig. 10).

Comporta III – Esta última fase corresponde ao Neolítico final-Calcolítico antigo; encontra-se representada somente nos níveis superiores do Possanco e possui os seus melhores paralelos em habitats de outros ambientes estuarinos, particularmente na Ponta da Passadeira, Barreiro (Soares, 2008), Montes de Baixo, Odemira (Tavares da Silva e Soares, 1997), Praia do Forte Novo, Quarteira (Rocha, 2003), Marismilla, Sevilha (Escacena et al., 1996).

Na indústria lítica, muito rara, ocorre a ponta de seta de base pedunculada. A pedra polida está representada por um pequeno machado de corpo ovoide (Ribeiro e Sangmeister, 1967) e um instrumento em pedra polida inédito da colecção da Herdade da Comporta.

Na cerâmica (Fig. 14), surgem agora, com bastante frequência, as pastas compactas e as superfícies bem alisadas e polidas–espatuladas; as formas são mais variadas, com taças carenadas e vasos esferoidais/ovóides, por vezes de fundo aplanado, decorados por mamilos alongados; presente a decoração simbólica (Fig. 15), constituída por triângulos incisos limitados e/ou preenchidos por pontuações, e representações solares. Outra inovação relativamente às fases precedentes é o aparecimento, nos níveis superiores do Possanco, de corniformes (unicornes) em cerâmica (Fig. 16). Estas peças têm os seus melhores paralelos no sítio produtor de sal da Ponta da Passadeira. Neste último habitat, confirmou-se a utilização dos corniformes como suportes para a colocação de recipientes sobre lareiras, provavelmente na fase de concentração da salmoura/cristalização do sal. O facto destes objectos possuírem uma função prática associada a estruturas de combustão, em nada contraria a sua inclusão nas manifestações do culto do touro, que teve curta e marcante visibilidade arqueológica na transição para o III milénio A.C., no contexto da RPS (Revolução dos Produtos Secundários da Criação de Gado – Soares, 2003). No domínio da coroplastia, importa ainda assinalar a descoberta no Possanco de uma estatueta em cerâmica (Fig. 17), troncocónica e antropomórfica, com a representação dos olhos (toscas depressões), do nariz (saliente) e com tatuagens (incisões irregulares, horizontais e ligeiramente oblíquas, situadas abaixo dos olhos e de ambos os lados do nariz) (Ribeiro et al., 1965), características que a colocam no grupo das representações do culto dos antepassados, estruturante da ideologia megalítica, e que aqui surge em interpretação tosca e periférica.

A exploração de sal, reconhecida arqueologicamente a partir dos característicos depósitos de tipo briquetage, encontra-se claramente representada em Comporta III, nos níveis superiores do Possanco.

Comporta III marca, por agora, o final da ocupação pré-histórica deste território, e a sua cronologia corresponde ao intervalo, último quartel do IV a primeiro quartel do III milénios A.C., sendo pelo menos parcialmente coeva do sítio da Ponta da Passadeira, no estuário do Tejo. As datações radiométricas obtidas para o Possanco confirmam plenamente este quadro cronológico (Fig. 10).

Conclusões

A ocupação do estuário do Sado durante o Neolítico médio possui, no estado actual dos conhecimentos, a sua maior concentração na região da Comporta. Aí foi possível desenvolver com sucesso uma economia baseada essencialmente na pesca/recolecção, servida pela grande riqueza do biótopo e por boas condições de acessibilidade proporcionadas pela vasta e protegida superfície aquática do sistema estuarino.

Logo a partir do primeiro quartel do IV milénios A.C., um grupo humano estabeleceu-se na região até então despovoada, e está por agora representado no sítio do Pontal (Comporta I). A sua olaria conservava ainda aspectos estilísticos herdados da do final do Mesolítico do Sado. Esta população iria sofrer um apreciável aumento demográfico e, consequentemente, povoar vasta área na fase seguinte (Comporta II), durante o 2º e 3º quartéis do IV milénio A.C.. Os habitats (Celeiro Velho, Malhada Alta, Barrosinha, Sapalinho, Possanco – nível inferior) estabeleceram-se em pequenos esporões arenosos, interflúvios de um complexo sistema de rias abrigadas do hidrodinamismo oceânico e favoráveis à exploração dos recursos marinhos. Durante esta fase, assiste-se a progressiva sedimentação etno-sociológica e ao reforço da territorialização. Com efeito, enquanto a camada inferior (C. 4) da Barrosinha revela a exploração de uma estreita faixa do espectro de recursos disponíveis, a reocupação da C. 2 do mesmo arqueossítio, após uma fase de abandono, evidencia a exploração de grande diversidade de recursos alimentares, e também algum stress ambiental, com sobreexploração do meio próximo, provavelmente em resultado de dinâmica de crescimento demográfico.

Na Fase II do Neolítico da Comporta, a cerâmica acusa de forma nítida o carácter vincadamente regional da cultura que ali se desenvolve, muito diferente da do Neolítico agro-pastoril megalítico do interior. A interacção entre estas duas realidades socioculturais tem por agora uma ténue evidência nas contas discóidais de xisto tão características do Megalitismo, encontradas na Barrosinha, e em machados de anfibolito exumados no Possanco. Porém, é provável que a interacção se fizesse através de trocas regulares de bens alimentares: peixe salgado e/ou fumado, sal e moluscos disponibilizados pelas populações ribeirinhas, e em sentido inverso, pão e gado.

Durante o último quartel do IV e 1º quartel do III milénios A.C. (Comporta III), o sítio do Possanco é reocupado, após longo abandono. A estrutura económica mantém-se semelhante à da fase anterior, mas a cultura material adquire significativas inovações bem expressas na produção oleira (por exemplo, taças carenadas e decoração simbólica) e nos ideoartefactos. Alguns deles – corniformes simples (unicornes) – colocam este sítio no contexto da segunda grande revolução tecnológica agrícola, caracterizada pela aplicação à agricultura da força de tracção animal (bovídeos), do carro e do arado. O Possanco, situado embora no mesmo ecossistema que os povoados anteriores, ocupou uma área parcialmente argilosa, das mais férteis daquela micro-região. A pesca e a recolecção, sobretudo da amêijoa, continuam a ser praticadas. A extracção de sal marinho por via ígnea é documentada por depósitos de tipo briquetage. Ao contrário dos povoados da Fase II, a última fase do Neolítico da Comporta apresenta indícios de uma maior abertura ao exterior, através de trocas regulares, por hipótese comandadas pelo sal, nesta fase mais necessário nos povoados do interior onde a população se adensava, e os excedentes também, exigindo conservação, nos grandes povoados de silos e fossos.

Teríamos, assim, nas sociedades do sudoeste peninsular (Quadro V), do Neolítico médio e final, dois modos de produção distintos, mas coetâneos: o modo de produção doméstico evolucionado ou megalítico, claramente hegemónico, e o agro-marítimo estuarino (até agora reconhecido nos estuários do Tejo, Sado, Ribªs de Seixe e Quarteira, Guadalquivir), subordinado ao primeiro, no quadro da primeira divisão socioterritorial do trabalho, onde a fímbria litoral estuarina se articularia com o restante território através de relações de tipo centro-periferia, desfavoráveis às populações ribeirinhas de economia essencialmente recolectora (Soares, 2011).

Valorização e futuro

Os concheiros neolíticos da Comporta têm estado sujeitos a intensa destruição em resultado de uma gestão desrespeitadora do ambiente (exploração de inertes, abertura de caminhos entre outros), desregrada, realizada ao sabor de interesses ocasionais. O MAEDS, atento a esta silenciosa e irreversível destruição de tão importante património arqueológico (Figs. 5B, 8 e 9), após acordo prévio com as autoridades competentes e com a Herdade da Comporta, propôs em 2012, aos proprietários, a realização de um plano de intervenção arqueológica partilhado, que contemplava as componentes de investigação, formação, salvaguarda e valorização, que não foi possível concretizar por falta de financiamento.

 

1Texto elaborado a partir de Soares & Tavares da Silva, 2013.

 

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Fig. 1 – Sítios ribeirinhos do Neolítico médio e final do Baixo Sado: 1- território neolítico da Comporta; 2 - Mitrena; 3 – Faralhão; 4 – Abul; 5 – Castelo de Alcácer do Sal.

Fig. 2 – Reconstituição do estuário do Sado há ca. 6000-5000 anos, com a localização das principais jazidas neolíticas da região: 1 – Rua General Daniel de Sousa/R. Frei António Chagas (Setúbal); 2 Convento de S. João (Setúbal); 3- Faralhão; 4 - Mitrena (Encosta do Moinho Novo); 5 - Celeiro Velho; 6 - Malhada Alta; 7 - Possanco; 8 - Pontal; 9 - Barrosinha; 10 - Sapalinho. Seg. Soares, 2008b.

Fig. 3 – Reconstituição paleogeográfica da área da Comporta durante o Neolítico. Propõe-se uma ligação franca entre o Sado e o Atlântico. Adaptado de Tavares da Silva et al., 1986.

Fig. 4 – Localização das jazidas neolíticas da Comporta na carta de esc. 1:50 000. 1 – Celeiro Velho; 2 – Possanco; 3 – Malhada Alta; 4 – Pontal; 5 – Barrosinha; 6 – Sapalinho; 7 – Carrasqueira. Adaptado de Tavares da Silva et al., 1986.

Fig. 5A – Malhada Alta (indicada por seta), vista a partir do Celeiro Velho. Em ultimo plano arrozal marginado pelo Sado. Foto de Joaquina Soares.

Fig. 5B – Malhada Alta. Frente de destruição por exploração de areias. Foto de J. Soares, Arquivo MAEDS.

Fig. 6 – Pontal e Barrosinha, vistas do quadrante sul. Em primeiro plano, plantio de batata-doce. Foto de Joaquina Soares.

Fig. 7 – Barrosinha, vista a partir do Pontal. Em último plano, o casario da Carrasqueira. Foto de Joaquina Soares.

Fig. 8 – Barrosinha. Aspecto do talude este do caminho que cortou a jazida arqueológica na direcção norte-sul, notando-se a presença de numerosas conchas de moluscos e fragmentos de cerâmica, resultantes da desmontagem das camadas arqueológicas. Foto de J. Soares, Arquivo MAEDS.

Fig. 9 – Sítio da Barrosinha após a abertura de caminho que cortou a jazida segundo a direcção norte-sul, nos anos de 1980, criando duas enormes frentes erosivas, que estão a destruir o até então melhor conservado concheiro. Vista de norte. Foto de Joaquina Soares.

Fig. 10 - Representação gráfica das distribuições de probabilidades das datas de radiocarbono calibradas a 2 sigma, da Comporta; utilizaram-se as curvas IntCal 09 e Marine 09 (Reimer et al., 2009) e o programa CALIB REV. 6.1.0 (Stuiver & Reimer, 1993). Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.

Fig. 11 - Morfologia da cerâmica do Neolítico da Comporta. Chamamos a atenção para a Forma 6, relacionável com a produção de sal por via ígnea. Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.

Fig. 12 – Cerâmica do Pontal (Comporta I). Atenda-se à divulgação nesta fase do sulco perimetral abaixo do bordo, quer em formas abertas, quer em formas fechadas. As decorações impressas são escassas. Os recipientes foram montados pela técnica do rolo.Apud Soares e Tavares da Silva, 2013.

Fig. 13 - Cerâmica do Neolítico da Comporta II. Sítios da Malhada Alta e Barrosinha. Adaptada de Tavares da Silva et al., 1986.

Fig. 14 - Cerâmica do Neolítico da Comporta III (Possanco). Adaptada de Tavares da Silva et al., 1986.

Fig. 15 - Cerâmica com decoração simbólica do Possanco (C.2). Nos 1, 3 e 4 seg. Ribeiro & Sangmeister, 1967.

Fig. 16 - Corniforme do Possanco (C.2). Des. de David Jesus e foto de Rosa Nunes.

Fig. 17 - Ídolo do Possanco. Estatueta antropomórfica de cerâmica. Des. de David Jesus e foto do Rosa Nunes.

Quadro I – Invertebrados marinhos da sítio da Barrosinha. Fase I (C. 4) e Fase II (C. 2). Seg. Tavares da Silva, et. al., 1986. Apud Soares 6 Tavares da Silva, 2013.

Quadro II Barrosinha. Fauna ictiológica. Número de restos por fases de ocupação (Adaptado de Lentacker, 1991). Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.

Quadro III Barrosinha. Fauna ornitológica e mamalógica. Número de restos por fases de ocupação (Adaptado de Lentacker,1991). Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.

Quadro IV Barrosinha. Fauna de vertebrados. Número de restos por fases de ocupação (Adaptado de Lentacker,1991). Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.

Quadro V – Sociedades tribais do Neolítico Médio-Final do Sul de Portugal. Seg. Soares e Tavares da Silva, 2013.